Um panavueiro de saudades, numa Terça-Feira de Carnaval que seria gorda e se tornou esquálida pelo luto

Um panavueiro de saudades

Um panavueiro de saudades de tantos que partiram. Da esquerda para a direita: Chicão, Enéas, Dernando, Thury e família Cruz

Vinícius de Morais e Carlinhos Lira, que escreveram a “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, jamais imaginariam que um verso valeria para Terça-Feira Gorda de Carnaval. E justo o primeiro: “Acabou nosso Carnaval…” As cinzas chegaram bem antes, na tragédia dos perto de 2,5 milhões de mortos na pandemia de coronavírus, no planeta. A Covid-19 fez naufragar na dor o Carnaval, uma das tradições mais arraigadas do povo brasileiro. A semana foi particularmente trágica para o Amazonas. Deixou um panavueiro de saudades. Pêsames, a cada família enlutada. Preces e solidariedade. Aqui lembramos de alguns que se foram. Permissão, leitor, para escrever na primeira pessoa.

 

Chicão Cruz

“Fala contrariado”. A saudação agora não será mais ouvida. Culto e sarcástico, o ex-procurador-geral de Justiça do Amazonas Francisco Cruz, o Chicão, partiu. Estava internado desde o começo de janeiro. O “contrariado” vem do hábito dos torcedores de Garantido e Caprichoso se chamarem de “contrário”. Chicão, que foi promotor em Parintins, torcia pelo Garantido. Participou da fundação do Bloco Independente Confraria do Armando (Bica). Várias vezes, colegas no secretariado da Prefeitura e em diversas outras situações, discutíamos saídas para problemas diversos. Ele era assíduo entre os amigos que mandavam dicas, via mensagens, durante os programas ao vivo, naquela solidariedade cheia de qualidade e informação. Eram motes certeiros. Fica um vazio com sua partida.

 

Enéas Gonçalves

Cheguei a Manaus em 1980. Gláucio Gonçalves me chamou para trabalhar no gabinete de deputado estadual, fim do mandato 1979-1983. Enéas Gonçalves, filho dele, entrou na legislatura 1983-1987. Confirmou o emprego. Enéas seria deputado mais três vezes e foi três vezes prefeito de Parintins. Sempre bem-humorado, dono de uma gargalhada reconhecida, levou o bom-humor ao extremo em seus programas na parintinense Rádio Clube. Ele mesmo contava a história do falecido Padre Lupino, em que ele próprio, prefeito, foi ironizado publicamente. Enéas partiu sem revelar o boi de preferência. A filha, a vereadora Vanessa, foi Sinhazinha do Garantido e ele ia para o bumbódromo de branco ou amarelo. Era um caso raro de parintinense sem bumbá. A Ilha Tupinambarana fica mais triste com essa partida.

 

Aristóteles Thury

O desembargador Aristóteles Thury, o presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM), despia-se da toga e se tornava o maior pé de valsa, com a esposa. É assim que será lembrado pelos mais próximos. “Foi-se meu grande amigo”, a mensagem que mais se leu nos grupos das redes sociais. Ser amigo é uma qualidade inesquecível.

 

Maxwell Fagundes

O dono do tradicional restaurante “La Barca”, Maxwell Delgado Fagundes, será lembrado pela capacidade inesgotável de adaptar festas ao orçamento dos manauaras. Seu restaurante foi demolido para construção do viaduto Miguel Arraes, na Recife, e ele fundou outro e mais outro. Ultimamente, além do refeitório da Prefeitura de Manaus, abria para eventos no Flat, na avenida Djalma Batista. A família chegou a pedir ajuda para custear a internação em UTI privada. Não deu tempo. Ele sofreu um AVC e partiu.

 

Dernando Reis

O empresário Dernando Reis partiu nesta terça (16/02). Ele era diretor de Marketing da atual diretoria do Caprichoso. Foi fundador de algumas empreitadas pioneiras e conhecidas na cidade: “Rock Burger”, “Filex” e “Prime Rib”. Era irmão dos radialistas Delson e Fernando Reis. Participou ativamente da luta da irmã, Elaine, falecida na Covid-19, e acabou sucumbindo a ela.

 

Família Cruz

Fiquei dias tentando e sem conseguir escrever sobre a querida Família Cruz. Passei infância, adolescência e parte da juventude frequentando a rua Sá Peixoto, o Esconde, em Parintins. A casa de Dona Marilda era como minha casa e seus filhos, irmãos. Alaíde, irmã dela, casou com Rubem dos Santos, meu irmão, ambos já falecidos – casal que nos deu duas sobrinhas maravilhosas. Os jogos de aprendizado humano, a luta contra a timidez e o entrosamento com a vida parintinense tiveram muito da participação deles. Descontraídos, alegres, joviais, entrosados, amigos extremados, solidários e atentos, eles estavam em todas. A Sá Peixoto se iluminava com a luz que irradiava deles e os demais integrantes da numerosa Família Cruz. Me atrevo a dizer que nem o coronavírus, em toda sua malignidade, conseguirá apagar esse brilho. O Esconde renascerá. Os espíritos de dona Marilda, Lúcia, Bay, Nelda, Marcelo e Baby, além da prima Irlani, esposa de Juarez Lima, falecida pouco antes, haverão de dar cabo a todo esse sofrimento. A alegria, marca das vidas deles, é uma chama que perpetuaram em nossos corações.

 

Saudade

É raro, entre os humanos atuais, alguém a quem o coronavírus não tenha imposto o sentimento de saudade. Como não lembrar da figura internacional, humilde e amiga do cantor Zezinho Corrêa? E do jornalista Agnaldo Oliveira, tão cheio de vida, vivendo intensamente o amor com Tereza Teófilo, esperançoso quanto ao transplante de rim? Surge sempre uma dor maior, quando as lágrimas parecem ter secado. Vem daí o sentimento de revolta com cada pequeno erro ou cada passo que deixa de ser dado por qualquer autoridade. Manifestações de egoísmo causam revolta redobrada. A peste avança. Milhares caem à esquerda e à direita. E o apego às coisas passageiras, materiais, perde o sentido. Que Deus nos proteja.

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