O curioso caso da medição do rio Negro no porto de Manaus. Base de estudos e decisões governamentais tem tratamento simplório

As brumas da manhã esfumaçada tomam conta do cenário. Faz frio, para os padrões do verão amazonense. Um homem, de cabelos encanecidos pelos 72 anos, vividos na atividade portuária, acena para um barqueiro que também madrugou e aluga o barco para entrar no Negro e chegar à régua de aço galvanizado onde estão gravados os números de enchentes e vazantes do rio. Ele é Valderino Pereira da Silva, a figura mítica que lê e registra, todos os dias, o nível das águas. O resultado serve de base a todos os estudos sobre o fenômeno cíclico da Bacia Amazônica, mas, surpresa!, não é remunerado por isso. É voluntário.

Valderino, em seu jeito humilde e direto de quem lida mais com a verdade que com a “habilidade”, afirma: “Se um dia eu resolver não medir o nível do rio, ninguém pode dizer nada. Faço isso porque gosto de ver o reconhecimento das pessoas”, disse. Com efeito, ele recebeu até a comenda máxima do Legislativo do Amazonas, a medalha Ruy Araújo. Com toda justiça.

É incrível que um trabalho de importância capital, como esse, seja tratado de forma tão simplória. O “Senhor das Águas” é funcionário da empresa privada que, naquele negócio estranho, até hoje questionado na Justiça, comprou o Porto de Manaus, o histórico Roadway. Não é, portanto, sequer, funcionário público.

A partir dos números colhidos por Valderino, porém, as autoridades estaduais e municipais decretam Estados de urgência ou emergência nas cheias e vazantes. Tais atos significam licença oficial para contratar e comprar sem licitação – o que vai criando verdadeira indústria, à disposição de prefeitos e outros administradores corruptos de todas as latitudes.

Há outras implicações. O pescador, que vem de outros Estados ou mesmo do exterior, aprendeu que a pesca do tucunaré fica boa a partir do momento em que o Negro chega aos 25 metros. E que o auge se dá aos 19m, sendo o limite, aos 16m, quando a água fica branca e o tucunaré desaparece.

Valderino, para citar exemplo de como o sistema é frágil, foi traído pelos tufos de cauixi que cobriram a régua na brusca descida do rio, a partir da sexta-feira 09/10. Foi como se tirassem a rolha do fundo do Negro e as águas, que estavam descendo no máximo 20 centímetros por dia, chegaram a bater o recorde de descida, desde 1902, chegando a 40cm, na passagem do sábado 10/10 para o domingo 11/11. Isso significa mais de um metro de descida em apenas três dias.

Simples e direto, como sempre, Valderino confessou que havia errado na medição de toda a semana anterior. E foi lá, nos números publicados diariamente no site www.portodemanaus.com.br, corrigindo de um a um, para chegar à descida de quase dois metros num único fim de semana.

Esse homem precisa de ajuda. Não dá para ser assim, tão sem estrutura, trabalho com tantas implicações e fundamental para Estado dependente do rio como é o Amazonas.

Há muitos órgãos que se utilizam do voluntarismo de Valderino, como a CPRM, o Serviço Geológico do Brasil, o Governo do Amazonas, a Prefeitura de Manaus, as prefeituras do interior e as secretarias e órgãos ambientais estaduais e municipais. Não dá para esse trabalho ser voluntário e manter tantas áreas de ruído. Imprecisões de centímetros são importantes para a história do nível do rio.

O Tribunal de Contas do Estado (TCE) e o Ministério Público Federal (MPF) devem olhar isso à luz da legislação e buscar uma forma de interferir para tornar público, isto é, com responsabilidade cível, o que é privado, voluntário e, ao mesmo tempo, tão fundamental.

Eis aí um pequeno grande exemplo de como o Amazonas trata questões estruturantes. Assim não dá.

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1 comentário

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  1. José Roque Nunes Marques disse:

    Prezado Marcos Santos,
    Estou lendo esta matéria com dois meses de atraso, mas a tempo de parabenizá-lo pela sua beleza na escrita, humanidade no olhar e oportunidade de mostrar a população do nosso Estado o trabalho voluntário do Seu Valderino.
    Parabéns pra você e só Seu Valderino pela história de vida.