À Maria Ângela, com carinho e um beijo contrário na palma da mão

Maria Ângela Albuquerque Faria faleceu hoje (20/02), em Parintins, vítima de parada cardíaca, aos 91 anos de idade. Não tive coragem de ligar pro Paulinho, nem pro Zezinho, nem pro Antônio ou para a Graça. Sei que todos, filhos da madrinha do Boi Bumbá Garantido, estão muito feridos.

Sinto-me no dever, porém, de registrar aqui a trajetória dessa mulher especial e do carinho que ela fazia questão de cultivar, entre aqueles que escolhia para amigos.

Maria Ângela inaugurou o fanatismo extremado pelo Garantido. Criou, com isso, o sentimento contrário, no Caprichoso. Fomentou ainda mais a rivalidade. Estimulou, com seu modo de amar o vermelho e branco, o filho mais velho, Zezinho Faria, a usar os galpões da loja A Jotapê, da família, para manter intactas as estruturas de alegorias e fantasias do Garantido, de um ano para o outro. O bumbá economizou um dinheirão. Partiu na frente do Caprichoso, que continuou construindo tudo do zero, anos a fio.

Fez mais, a querida madrinha do boi contrário. Gestou, no seio familiar, a figura de Paulinho Faria, o apresentador responsável por grande parte da formação da torcida do Garantido. O talento, o carisma e a empatia dele fariam muito, mas, com certeza, menos que fizeram adicionados à entrega total na apresentação do bumbá. Isso se espalhava pelo ano inteiro, nas ruas da cidade, especialmente no mês que antecedia o Festival, num serviço de alto-falante colocado na picape amarela que entregava os móveis de A Jotapê. Ele “filava” o veículo, com o olhar cúmplice de “seo” JP Faria, para fazer propaganda do bumbá. Nesse caso, Paulinho era o contraponto de Zé Maria Pinheiro, que fazia isso desde alguns anos antes em favor do Caprichoso.

Graça Faria, a única filha do casal, caprichava, ooops, se esmerava na ajuda aos artistas de fantasias e cuidava com enorme carinho da preparação das meninas da Baixa do São José. Como? Muitas vezes comprando do bolso da família o adereço, a bijuteria ou o tecido que davam o toque final no visual.

Antônio Faria, com sua inteligência diferenciada, jeito conciliador e enorme capacidade de convencimento, comia pelas beiradas, conversando no pé de ouvido, fortalecendo o boi naqueles pontos em que via fragilidade.

Zezinho Faria foi presidente. Paulinho Faria, o eterno apresentador. Antônio Faria, o intelectual por trás de muitos movimentos de bastidores, que só apareciam na arena. JP Faria, foi financiador. E Maria Ângela, o grande motor de todos eles, empurrando, incentivando e, na maioria das vezes, incendiando o espírito, empurrando na fogueira do fanatismo que só ela sabia erigir.

A piscina era azul? Primeiro ela não deixava colocar água, interditava o local, durante o Festival. Depois, pintou o fundo de um inusitado vermelho. Chico da Silva disse na rádio que gostava do Garantido, mas torcia mesmo pelo Caprichoso? Tira todas as fotos dele da parede e até mesmo picha o retrato pintado a óleo por Jair Mendes no muro do quintal – depois, o artista, ídolo da família, seria perdoado e, mais tarde, quando compôs “Vermelho”, novamente chegou perto da canonização entre os Faria.

Ela sabia fazer as pessoas se sentirem distinguidas. Exceto na semana do Festival Folclórico, porque aí seria demais!, eu, apresentador do Caprichoso, era um dos poucos azuis admitidos na casa dela. Ia para a cozinha e recebia dicas sobre o trabalho no rádio. O papo sobre bumbá, polidamente, ela evitava comigo.

A partir da amizade com Paulinho, colega de aula, de rádio Alvorada e de noite, tornei-me amigo da família. Vi como todos a tinham como um ícone, uma espécie de entidade superior, pairando nas vidas de todos.

É assim que, hoje ícone do Boi Bumbá Garantido, Maria Ângela merece todas as homenagens. O vermelho e branco deve muito a ela. E, como nada de um lado acontece sem que tenha reflexo no outro, nessa balança sensível que é o mundo de Garantido e Caprichoso, o azul e branco também tem um débito com ela, por tudo que ela e a família fizeram pelo Festival Folclórico de Parintins.

Meus pêsames, Zezinho, Antônio, Paulinho, Graça e netos. Quando a vida acaba, fica a história. E a querida matriarca se vai, marcando o nome em muitas vidas e deixando lembranças, como a da imagem daquela casa vermelha, surgindo no horizonte, na última curva do rio Amazonas, trazendo a certeza da chegada à nossa ilha querida.

Dona Maria Ângela, vá em paz. A vejo cantando, para o seu Garantido, “Um beijo na palma da mão”, toada de Chico da Silva:

“Adeus amor, eu já vou embora/ Sorria amor, por favor não chora/ O boi Garantido tem que voltar pra fazenda/ Morena bonita, por favor, não mais me prenda/ Amor eu vou voltar/ E nos teus olhos de novo/ De boi brincar. Pra garantir a nossa união/ Deixo contigo morena/ O meu coração. Vou correndo e volto logo pra te ver/ Estou chegando bem antes do amanhecer/ Meu amor não fica assim/ Não sofre não/ Lá vai um beijo na palma da minha mão/ Vou levar o Garantido/ Meu amo mandou levar/ Dou um pulo na fazenda/ E volto pra te amar.”

PS: Querido Omir, esculpe. Você e Omar estavam em Belém, nessa época, mas foi uma falha omiti-lo. Todos nós, do Caprichoso, acompanhamos o vai-e-vem de materiais chegando do Pará para o Garantido e sua participação em todos os momentos da família, como filho mais velho, é evidente. A mesma coisa vale para esse grande artista, grande voz, grande figura humana, que foi o Omar. Um abraço e me aguarde que vou aí com você, qualquer dia desses, tomar um açaí. Romana, obrigado pela lembrança.

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14 comentários

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  1. Renata Faria Scherer disse:

    Linda e justa homenagem a tia Maria e a “Fariazada”

  2. Fátima disse:

    Sempre achei que você é isento em suas opiniões e colocações!!! Prova disso é essa bela homenagem que fazes a madrinha do Boi Garantido “Maria Ângela”. Deixando claro que a rivalidade deve ser somente na arena, amizade, respeito e companheirismo é muito importante.

  3. João Paulo Faria disse:

    Marcos, neste momento difícil para todos nós eu só tenho a lhe agradecer pelas belíssimas palavras nesta que foi a melhor descrição do histórico da Família Faria no nosso Boi Garantido.

    Muito obrigado, de verdade.

  4. Lauro Costa disse:

    Suas palavras refletem o sentimento da população de Parintins e que amam o folclore parintinense.

    1. maria da conceicao nunes ferreira disse:

      Lauro Costa dos verdadeiros parintinenses, como você, Marcos e etc….

  5. ilma disse:

    Amei, cada palavra dita, neste texto. Va cm Deus, minha querida.

  6. Raffaele Amazonas Novellino disse:

    Parabéns, Marcos Santos!!! Tanto pela crônica como pelo justo reconhecimento da importante função de Dona Maria Ângela na construção do folclore do Boi Bumbá de Parintins com alcance em todo o Brasil. Os heróis e heroínas dessa história dos bois Garantido e Caprichoso não são inimigos, simplesmente adversários ferrenhos, pois nascidos são todos da mesma seringueira ou da mesma castanheira.

  7. Denilza Maria Bezerra Pessoa disse:

    Resumo lindo da mulher que viveu a vida pelo Boi garantido, ficava brava, mas na primeira apresentação passava toda a raiva. No dia anterior, à tarde, conversava com ela por telefone e, ela me falava que naquele dia estava com muita saudade do filho Omar, que doía até o coração e, eu preocupada já tomou os remédios, ela respondeu na está surtindo mais efeito.

  8. Albia Neves disse:

    Emocionante, D. Maria Angela merece muitas homenagens, pois foi uma grande mulher e deixou uma história linda para contar.

  9. Danielle disse:

    Preciso deixar meu agradecimento a vc Marcos Santos que com palavras tão inspiradas deixou meu coração mais consolado,lindo jeito viu! São cumprimentos de uma torcedora do boi bumbá garantido que mora nos EUA e tive o previlegio de ser recebida na casa dessa gentil senhora que nem nos conhecia e nos convidou a entrar no seu palácio GARANTIDO.

  10. ROMANA PICANÇO disse:

    A SRA. MARIA ANGELA , TE M MAIS UM FILHO. MEU QUERIDO AMIGO, OMIR DE ALBUQUERQUE FARIA. MEDICO DERMATOLOGISTA.

  11. Ana Lourdes de Castro Miranda disse:

    Marcos, sensacional! Que olhar! Fico feliz em conhecer essa história de 91 anos de amor de Dona Maria Angela por todos, em especial pelo Garantido. Parabéns a você por nos proporcionar esse conhecimento de uma forma tão gostosa de se adiquirir.

  12. Luiza Picanço disse:

    Marquinho, linda crônica. Parabéns!

  13. Só me resta às lágrimas nos olhos, a lembrança de Dona Maria, e a história da família preservada na memória de pessoas decentes como você Marcos Santos. Parabéns!!