Um conto da gata borralheira moderna, entre Manaus e Genebra

O jornalismo apresenta armadilhas o tempo inteiro. Quem se pauta pelo o que?, quem?, como?, quando?, onde? e por que? acaba esbarrando no imponderável e na privacidade das pessoas. Você tem uma história, mas, se contá-la integralmente, vai mexer nas vidas de muitos e pode prejudicá-las. A alternativa, nessas casos, é apelar para a ficção e quem quiser que tire as suas próprias conclusões.

Escrevo a seguir uma história real, que meu amigo Elson Farias, escritor, poeta, jornalista, jamais catalogaria no jornalismo e facilmente jogaria na esfera dos contos, como estilo literário. Peço licença para não deixar escapar a história:

Janete, amazonense, nascida e criada num tradicional conjunto habitacional de Manaus, viveu uma adolescência atribulada. A mãe a convenceu de que, fora do peso, diferente da irmã mais nova, esbelta, simpática, paquerada, era quase uma aberração da natureza.

Jovem, aprendeu a conviver com a ideia de que ser gorda e desprestigiada pela turma da irmã, cada vez mais crescente, era uma barreira intransponível para quaisquer planos que viesse a fazer para o futuro. O pior é que a irmã, além de mais esbelta, recebia sinais diários de preferência da mãe. Janete, nesses momentos, buscava refúgio no colo do pai, Jaime, compreensível, carinhoso e igualmente alvo da cada vez menos indisfarçável indiferença das outras mulheres da casa.

Jaime foi ficando idoso e adoeceu. Chegou ao ponto de, no máximo, lançar um olhar tênue de apoio à filha nos “pegas” com a mãe, mais jovem que ele e ainda vigorosa. Definhou, sofreu um interminável ir e vir de hospitais, e, numa manhã manauara atípica, nublada e chuvosa, faleceu.

Janete sofreu muito. Rompeu-se o único e precioso elo de carinho que tinha com a vida. Passou semanas quase sem comer, inerte, entregue a um mutismo que oscilava entre a revolta e a mais absoluta indiferença.

Voltou-se para a Internet. Havia ganho um notebook do pai. O FaceBook e o Twitter ainda não tinham virado febre, mas os programas de bate-papo já estavam na moda. Nunca fora de estudar e por isso tinha dificuldade de encontrar emprego – outro motivo da impiedosa implicância da mãe –, mas tinha facilidade com línguas. O pai pagara-lhe um cursinho de alemão, que funcionava duas ruas atrás da casa deles, e logo descobriu-se teclando com amigos de outros países com esse idioma.

Silvester, suíço descendente de franceses, funcionário da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, fazia parte de grupo de estudo online de português para falantes de alemão e acabou cruzando com ela. Começaram a conversar no expediente dele e, depois, para driblar as seis horas de diferença do fuso horário, também quando chegava em casa.

Quase sem que os dois percebessem, o bate-papo virou relacionamento. À vontade no mundo virtual, ela esqueceu a baixa autoestima da vida real e se jogou de cabeça.

As coisas, enquanto isso, estavam cada vez piores em casa. Ela, a mãe e a irmã mal conseguiam sobreviver com a pensão deixada pelo pai. Chegaram a recorrer à ajuda de vizinhos.

Todas essas angústias e dificuldades eram compartilhadas com Silvester. Os dois não tinham segredos. Ela conseguia se abrir completamente com ele.

– Oi Janete, tudo bem?, teclou ele, numa manhã de sábado, dia do aniversário dela.

– Tudo bem. Como estão as coisas em Genebra?, respondeu.

– Em Genebra não sei, mas estou adorando o sol de Manaus.

Ela ficou perplexa, por alguns instantes, mas depois entendeu tratar-se de uma brincadeira.

– Kkkkkkkkk. Essa foi boa. Quase me pegou.

– Nada. Não é brincadeira. Estou aqui em Manaus. Cheguei ontem. Já fui na sua casa, vi você e agora estou esperando que venha me ver, aqui no Amazonas Shopping.

Janete gelou. Lembrou que ele tinha pedido o endereço dela, há cerca de um mês, a pretexto de enviar-lhe um presente de aniversário. E se fosse verdade? E a sua conformidade com o relacionamento virtual, distante dos seus medos de enfrentar a dura realidade frente a frente?

– Oi Janete. Você está aí?

– Estou. Calma. Preciso me refazer da surpresa. Você não está brincando comigo, não é?

– Claro que não. Vim aqui para conhecê-la, ficar com você e até levá-la comigo. Venha me ver logo que estou impaciente.

– Ok, chego aí em meia hora.

Ela sentira, na véspera, coincidência ou não, uma estranha animação. Foi ao salão, fez as unhas, arrumou o cabelo e até se submeteu a uma dolorosa e demorada limpeza de pele, coisa que raramente fazia. Comprou roupa nova e, mais raro ainda, aceitou o convite da irmã para comemorar o aniversário na balada. A mãe a acordara com um bolo e velas, cantando parabéns. Estava sendo, definitivamente, um dia de surpresas.

Arrumou-se rápido e voou para o shopping. Hesitou um segundo, ao vê-lo, mais belo do que parecia na webcam e, embora de tênis, calça jeans e camisa polo, destoando claramente dos amazonenses. Os olhos azuis logo a encontraram e, antes que passasse o frio na barriga, ele já estava perto dela. Trocaram um apertado e demorado abraço.

Janete não conteve as lágrimas. Jamais, em toda sua vida, experimentara uma sensação tão boa.

Silvester tocou seu queixo, levantou seus olhos à altura dos dele e a beijou. Primeiro devagar, num beijo suave e carinhoso, que foi se prolongando e se tornando mais íntimo. Ali, em plena praça de alimentação de um lotado Amazonas Shopping, sob os olhares curiosos dos frequentadores, os dois se beijaram longamente, esquecidos do mundo.

Ele meteu a mão no bolso, ato contínuo, e retirou de lá um objeto pequeno, caprichosamente embrulhado para presente.

– Abra. Eu vim de muito longe para trazer seu presente de aniversário.

Agradecida, ela o beijou novamente e o levou pela mão até uma mesa próxima. Desfez o embrulho. Tinha uma caixinha. Abriu. Dentro havia um par de alianças.

– Aceita casar e ir morar em Genebra comigo? Calma. Você tem tempo para pensar. Tenho um mês inteiro de férias para conhecer você, sua família, sua cidade e seu país. Depois a gente casa e viaja, se você assim decidir.

Um novo abraço apertado, molhado pelas lágrimas dela, selou a tão improvável união.

Janete e Silvester vivem em Genebra. Ele prosperou na profissão. Ela trabalha num grande banco e dá palestras em vários países. Os dois viajam pelo mundo todos os anos.

A irmã, sempre bonita e em forma, teve um filho, mas permanece solteira. Continua morando com a mãe, na mesma casa. As duas foram várias vezes à Suíça. Ambas vivem do dinheiro que Janete, a filha e irmã rejeitada e desajeitada, envia todos os meses.

A história é real. Mas, claro, está contada com uma boa pitada de ficção.

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1 comentário

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  1. paolo wanderlei disse:

    Gostei mto. Obrigado.