Meu pai, de pescador e irmão solidário de Luiz Gonzaga até o momento em que foi chamado de ‘O lendário Zé Caiá’

O silêncio toma conta do lago, com suas margens quase todas submersas pela enchente implacável. O menino, aos 7 anos, contempla a solidão segurando o mais firmemente possível a linha do espinhel, preocupado em não deixá-la correr para não se ferir nos anzóis. O pai havia mergulhado para tirar um peixe, que tudo indicava ser dos porrudos, enroscado no meio da canarana e do murizal. O tempo passa, torna-se uma eternidade e o menino chora. “Perdi meu pai”, pensa, sem ver nenhum sinal na água, aferrado ao arreio de pesca. Imagina que, no lugar do peixe, uma cobra esticava a linha. De repente, de supetão, eis que um tambaqui enorme emerge da água e é jogado no meio da canoa. “Pronto! Taqui o bruto!”, diz o pai.

Aquela imagem se manteve em minha mente pelos outros 45 anos de convivência com meu pai e se sobrepôs até mesmo à imagem do ancião, aos 93 anos, quase inerte, em seus últimos momentos, no hospital. Zé Caiá, meu pai, como todos os pais devem ser para os filhos, para mim sempre foi uma lenda.

Permanece inexplicável, por exemplo, como alguém podia dormir 15, 20 dias, nas canoas sem assoalho, com as costelas em cima das cavernas, em nome de uma pescaria mais produtiva. Ainda hoje recordo a dor nos ossos que isso provoca, ao acordar no dia seguinte. Sem contar o carapanã, que aparece em nuvens no fim da tarde e no começo da manhã, às margens dos lagos afluentes do rio Amazonas.

“Tem um lago, em Urucurituba, que dá muito tambaqui e pirarucu essa época”, contava-me, naquelas horas em que sentávamos na frente de casa e ele desfiava suas histórias, numa dessas voltas de pesca mais longa. Hoje sei que, em voadeiras que andam perto de 50 milhas por hora, leva-se quase três horas para fazer essa viagem. De barco, seis a sete horas. De canoa, a remo, como ele fazia, o percurso vira uma eternidade.

E qual foi a participação de meu pai no Boi Bumbá Caprichoso? Anônima. Igual a de milhares de torcedores que, ontem e hoje, são a mola mestra do azul e branco – como também do Garantido. Ele fez muito, com toda dedicação, mas impulsionado pela verdadeira veneração que tinha pelo irmão mais velho, Luiz Gonzaga, este sim baluarte de ponta do Caprichoso. Isso se transformou num amor profundo pela agremiação, que transmitiu a todos nós.

A vida de Zé Caiá espelhou o modo de vida parintinense mais tradicional, que aos poucos vai sendo perdido. À medida que as árvores do catauari e da abiurana, entre outras frutas que alimentam o peixe, vão sendo derrubadas pelo avanço malthusiano do progresso, o caboclo se transfere para os canteiros da construção civil na cidade.

Quando escrevi “Os pescadores”, que Chico da Silva musicou como toada, pensei nas rodas que essa gente tão genuína fazia após o siricó – pesca coletiva quando todos agitam as margens do lago e fazem uma roda, jogando as tarrafas ao mesmo tempo no centro. Lá estavam Luiz Gonzaga, Santarém, também meu tio, Pamim, Pedreirão e Porrotó. Por causa deste, aliás, fui criticado porque, irmão de Lindolfo Monteverde, ele era, claro, torcedor e brincante do Garantido, mas nunca me passou pela cabeça discriminar lembranças tão caras por causa disso.

Eu ficava passando pelo meio das canoas e eles se divertiam: “Menino, pega o peixe que você quiser. Mas vai ter que comer tudo o que pegar”, dizia “seo” Nascimento. Que, aliás, foi um dos amos ancestrais do Caprichoso. E, naquela fartura de peixe fresco, recém-pescado, no auge da engorda nos lagos, eu comia por um batalhão.

Outro dia, me relata o Marcos Filho, ele estava comendo um pacu frito, com o Marcos Neto no colo. Em seu um ano e meio de vida, o bebê meteu a mão no prato e sacou uma costela. E devolveu, antes que o pai pudesse fazer alguma coisa, as espinhas limpinhas ao prato, fazendo uma cara de travesso. A terceira geração de Zé Caiá promete.

Eis que, no dia 29, transmito a apresentação do Caprichoso, na TV Tiradentes, quando o Júnior Paulaim, apresentador do Caprichoso, no auge da descrição de uma alegoria de homenagens a figuras do bumbá, descreve meu pai como “o lendário Zé Caiá”. Fiquei com um nó na garganta e não pude conter as lágrimas. Ah, Júnior, se o Rubem dos Santos fosse um profeta não teria feito melhor. Ele dizia: “Marcos, tem um garoto que apresenta o Garanchoso, o Júnior, filho do Carlos Paulaim, que é um talento só. Sabe dizer as coisas. Fica de olho nele”. Você homenageou nossa lenda, nosso herói do rio, nosso mais precioso patrimônio, o querido Zé Caiá.

Feliz Dia dos Pais a todos. Velai por nós, meu pai.

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4 comentários

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  1. Val Batuel disse:

    Seu primo que homenagem maravilhosa você fêz ao nosso grande e lendário Zé Caiá,ouvi muitas presepadas do meu tio já falecido Zé Maria(alfaiate)sôbre a turma do esconde que êle pertencia e principalmente as bovinas,que Deus e Nossa Senhora do Carmo lhe dêe muita saúde,estamos na torcida mano,grande abraço.

  2. Rogerio P Rabello disse:

    Bravo, Marcos, bela homenagem aos nossos pais, presentes e ausentes.

  3. Hiel Levy disse:

    Você me arrancou algumas lágrimas, meu caro colega. Afinal, nós, que temos nossos pais como uma lenda, sabemos bem o que é sentir a falta deles. Grande Zé Caiá, a quem não conheci, mas que já admiro!

  4. Dodo Carvalho disse:

    Bravo, Zé Caia herói do Rio e do Igapo