O ‘sanfona’ de A Crítica e o recorde de 46 páginas de jornal fechadas numa única edição

O jornalismo vai mudando, evoluindo, ganhando novas caras e a gente começa a lembrar das histórias de antigamente. Outro dia me vi recordando, com Tereza, os famosos “pescoções”, o expediente estendido da sexta-feira, na redação, para adiantar a edição de domingo, num tempo em que ainda não havia a ditadura da imagem e o jornal era, sobretudo, texto. A gente entrava 9h, 10h e saía da redação 1h, 2h, 3h e até 4h.

Era comum sair em grupo direto para um lugar que preenchesse os requisitos de oferecer comida boa e barata e bebida gelada. Durante anos, ao lado de Mário Freire, Wilson Nogueira, Gérson Severo, Vera Lúcia Pinto, Elaíze Farias, Jocilene Chagas, Jacira Oliveira, Francine Tapajós, Sérgio Bártolo e outros e outras, a gente ia muito ao Chopicanha, na esquina do Boulevard com a Djalma. Foi marcante quando, editor do “sanfona”, de A Crítica, bati o recorde de fechamento de páginas num só dia, com um calhamaço de 46 páginas.

Hoje em dia não se verá mais isso. Paulo Melo, diretor comercial de A Crítica, tinha uma equipe agressiva de venda e conseguiu estabelecer com a redação um acordo: para não mexer com os cadernos tradicionais – caso do primeiro caderno, com suas coluna fixas, como o Sim & Não, editorial, artigos etc. – foi criado o “Geral”. Ele ficava à parte e só circulava quando os anúncios extrapolavam o espaço da edição, digamos, normal. Podia ter quatro, seis ou oito páginas por caderno e ia de um caderno ao infinito. Logo, no jargão da redação, passou a ser conhecido como “sanfona”.

Saindo do exílio que me foi imposto por ter sido secretário municipal de Comunicação, quando fiquei três anos “proscrito”, com o poder vigiando para que não conseguisse emprego, entrei em A Crítica fora de ritmo. E aceitei a editoria do “sanfona”.

Era véspera do Dia das Mães. Os anúncios do domingo, como sempre acontece nessa data, prometiam. Paulo Melo, já falecido, colocou em campo sua estratégia agressiva, horizontal, para não deixar ninguém fora da casa. Como resultado, o “sanfona” foi de 16 para 32 e de 32 para 46 páginas.

O conteúdo? Artigos, matérias especiais compradas de agências, material não aproveitado durante as últimas semanas, meses, anos pelas outras editorias… É bom lembrar que estávamos em 1996. A Internet patinava na pré-história e a redação ainda não tinha nem modem. Ninguém nem sonhava com o Google. As fotos eram em papel e o diagramador escrevia atrás delas o tamanho e a página em que seriam editadas, sendo comum sobrepor um papel novo porque o espaço acabava, tantas vezes a foto era usada.

Quando o jornal comprava uma matéria “especial” de uma agência de notícias, como Agência Estado ou Agência Folha, esse material chegava via telex ou teletipo, era redigitado pela Vera, Marilac e outras colegas, e só então colocado à disposição do editor. Não dava para improvisar. O “sanfona” tinha que ter um estoque considerável e ficar pronto para o imponderável.

Olhando as edições de hoje, todas muito enxutas, procurando o máximo de economia em papel, o internauta deve se perguntar se não tem um desconto nessas 46 páginas. Não. Tem é aumento porque, naquela época, com a dificuldade de ilustração – era comum, por falar nisso, que ilustração do Myrria ou do Fernando Brum fosse usada em várias edições –, as manchas de texto nos jornais eram muito mais densas que hoje. Usava-se corpo (tamanho da letra) e entrelinha (espaço entre uma linha e outra) bem menores. Com o texto empregado em uma página, daquele tempo, dava para fechar quatro páginas na diagramação atual ou mais, fácil, fácil.

O “desconto” fica por conta do enorme espaço ocupado pelos anúncios. Era um material mais barato e o anunciante se dava ao luxo de comprar formatos exóticos. Havia página que sobrava só uma tripa, lá em cima, para a parte editorial. O resto tudo era anúncio. Cabia o título, sutiã (o texto logo abaixo do título) e uns 500 caracteres, no máximo. Estava fechada a página.

“Aumento” se dava na capa, que precisava do mínimo de apresentação editorial, para não desvalorizar de vez o espaço dos anúncios, e o “casamento” dos cadernos. Ou quando sobrava uma página viúva, necessária para formar o par de outra – caderno de jornal sempre tem número par de páginas –, que também precisava ser preenchida por material editorial.

Foi uma maratona, enfim, que começou às 9h de sexta-feira e terminou às 4h de sábado. Começamos eu e o Mário Buzaglo, que encarou a diagramação. Depois foram ajudando os outros diagramadores, Fábio, Mariozinho… chegou uma hora que eu estava usando todos os diagramadores porque todo o resto do jornal tinha sido fechado e eu ainda tinha um monte de páginas para fechar.

Hoje, olhando retrospectivamente, fico me perguntando porque não pedi ajuda. Lembro que isso não me passou pela cabeça. Talvez porque os outros colegas editores, todos, estivessem também ocupados em cadernos avantajados que, embora não chegassem nem perto do “sanfona”, exigiam mais tempo do editor que o tradicional. Ninguém saiu cedo naquele dia.

Saí exausto, mas com uma satisfação enorme dentro do peito. Um massacre intelectual como esse, com você sendo obrigado a dar título de tudo quanto é jeito, nos mais variados assuntos, sem poder pensar muito, tinha tudo para se transformar numa tragédia editorial. E o bom é que o “sanfona” ficou redondo. Milagrosamente redondo. Foi até elogiado.

Ainda deu tempo de passar no Chopicanha e encontrar os amigos de sempre. Um absurdo, dirá o leitor, com toda razão. Quem nunca fez um “pescoção” jamais conseguirá entender a necessidade de um tempinho para a adrenalina baixar e o corpo, finalmente, entrar no merecido descanso.

Saudades da redação.

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1 comentário

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  1. carlos disse:

    Que historia interessante. E eu que achava que a vida de distrito eh que era puxada.