Dona Raimunda, a mulher brava que simboliza a ternura de todas as mães

Olho para o prato dela e percebo que a porção da caldeirada de jaraqui está menor que as demais. Não me contenho, em minha inocência infantil, e indago: “Por que a senhora está comendo tão pouco”. E ela, incontinente: “Meu filho, o Efraim e a Itamar ainda não comeram. Temos que deixar para eles”. Não deixo de notar o jaraqui inteirinho, em meu próprio prato, deixando bem nítido que ela comia menos para poder alimentar a nós, seus cinco filhos.

A cena é corriqueira. Minha mãe, Raimunda, a repetiu incontáveis vezes, sempre que a pesca de meu pai não ia bem ou quando o rodízio promovido pelo Sindicato dos Estivadores de Parintins ficava distante dele.

O dinheiro era raro. A caça e a pesca não estavam mais tão fartos. Como explicar que esse casal tenha preservado os cérebros de meus irmãos, provendo-os da proteína necessária, fazendo com que todos se saíssem tão bem nos estudos? Não há outra explicação, senão o milagre produzido pelos braços fortes de meu pai e o amparo oferecido por minha franzina mãe, em momentos de renúncia como o descrito acima.

Essa mulher de aparência frágil, em torno de 1m50, magra, hoje encurvada por seus 90 anos, sempre foi uma fortaleza, na defesa dos filhos. Eu a vi, várias vezes, vassoura na mão, enfrentando o genro que ousasse levantar a voz para minhas irmãs. Ou obrigando um ou outra, genro ou nora, que apresentasse qualquer atitude inconveniente em sua presença, a manter a postura e o respeito.

Dura. Forte. Frágil. Aprendeu a ler na Bíblia. Mal assina o nome. Mas ai do filho que faltasse um dia sequer à aula ou se alguma professora, nas reuniões da escola, se queixasse do comportamento de algum deles.

Para mim, a escola se tornou sagrada porque queria vê-la voltando com aquele enorme sorriso no rosto, satisfeita por algum pequeno elogio que a professora me tivesse feito.

Tudo isso a tornou uma gigante aos meus olhos. Mas nada mostra mais o tamanho de sua fortaleza que o sofrimento trazido pela vida. O pai faleceu quando ainda muito jovem. A mãe, minha querida avó Rosa, quando já estávamos todos nascidos – uma mulher admirável, cuja morte até hoje ainda sentimos muito; foram-se meus dois irmãos e minhas duas irmãs; a última irmã dela viva, tia Júlia, quatro anos mais nova, companheira de muitos anos, uma segunda mãe para nós, faleceu há poucos meses; hipertensa e lutando para continuar enxergando, permanece impávida. É a própria imagem da dignidade e altivez, transferindo sua capacidade de renúncia para os netos, bisnetos e trinetos.

Na última visita à tia Júlia, nós a encontramos prostrada numa cadeira. Estava muito doente. Para levantá-la era preciso cuidado ou os dedos ficavam marcados na pele. Olharam-se, emocionadas. Ficamos tensos. Temíamos uma explosão de choro das duas. Mamãe, porém, começou a falar com firmeza, lembrando momentos das duas, falando de sua própria vida, indagando sobre a irmã. Na saída, no lugar de qualquer despedida trivial, passou o braço sob o ombro de minha tia: “Vamos Júlia. Levanta pra se despedir de mim”. E ela, que há muitos dias não fazia isso, levantou da cadeira e foi até a sacada de sua casa, onde as duas trocaram emocionante abraço.

Canto minha mãe, parafraseando Leon Tolstoi, como forma de cantar todas as demais. É ela quem, em todos os momentos, habita o fundo da minha alma e, atenta em sua consciência sempre desperta, transmite os valores da humildade, humanidade e temor a Deus.

Parabéns à todas as mães. Sua bênção, querida mãezinha.

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6 comentários

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  1. Antonia Hipólito disse:

    Me fez chorar Marcos. Que bom que reconhece o valor de sua mãe.
    Feliz Dia das Mães Dona Raimunda!! Que Deus a abençõe grandemente!!

    1. Alfredo Leão disse:

      Dignidade é um conceito vago, mas lendo este texto, vislumbrei fisicamente na mãe Raimunda. Parabéns, pois é pelos frutos que se ver se árvore é boa ou má. Lembrei o cheiro de leite de rosa.

  2. Bené disse:

    Muito bem…esse é o Marcos que eu conheço…o outro tava ficando muito pávulo!

  3. Elson Farias disse:

    Marcos,
    sente-se que há sangue e lágrimas no teu texto, e vida. É em verdade uma homenagem.

  4. Janio Moraes disse:

    Bom filho será bom pai, marido, avó e bom cidadão.Assim fala minha querida mãe.É emocionante as suas palavras em devoção à sua querida mãezinha.É isso aí.

  5. Paulo Leao disse:

    Marcos, teu texto tem a verve de tua pulsao positiva de vida, do legado de tua mae muito amada, parabens que o Deus Triuno continue a abencoa-la juntamente com teu pai querido