Para Marcos Neto, às vésperas de entrar no fechado mundo dos avós

Amanhã, sábado, se Deus quiser, por esta hora, serei mais um orgulhoso vovô. Marcos Neto, esperado ansiosamente por Marcos Filho e Raquel, merece um panorama do que o espera aqui do lado de fora.

Não sei como era em 1961, quando nasci. Pela história soube que, naquele ano, Jânio Quadros renunciou à Presidência da República. Queria provocar uma convulsão nacional e ser reconduzido ao poder pelo povo. Isso não aconteceu e o gesto acabou se tornando o estopim para a ditadura que se abateu sobre o País por 21 anos.

Meus avós tinham partido. Restava-me vovó Rosa, autodidata alfabetizada na Bíblia, artesã especialista em objetos à base de cipó titica (vassoura, leque, cestos etc.). Não sei como seria se meu avô, marido dela, paraibano, descendente de portugueses, ou minha avó paterna, maranhense beneficiada pela Lei do Ventre Livre, ou meu avô paterno, também nordestino, estivessem vivos. Só sei que vó Rosa encheu minha infância de carinho e livros.

Conto, só pra você, um episódio que ilustra como era ter minha velhinha maravilhosa por perto:

Ouve-se muito, ainda hoje, em Parintins, onde nasci, a expressão “fulano é caboco estorde”. Minha avó solta-me, sentada na soleira da porta, um “fale com as pessoas, meu filho, não falar é coisa de caboco estúrdio”. Corrigi-a, do alto da sabedoria infantil, no ato: “Vó, não é estúrdio. É estorde”. Ela silenciou. Levantou-se, com a dificuldade que sabia transformar em elegância, e foi revirar suas coisas.

Eu continuei brincando, pulando de um lado pro outro, comendo uma goiaba aqui, um biribá ali, um abacate acolá, um jambo (esse apanhado no quintal da vizinha, dona Izomar), caju, graviola ou manga. Como era farto nosso quintal.

Vovó reaparece e, da soleira da porta de nossa casa de barro, coberta de palha, me chama: “Vem cá, meu filho, que eu quero te mostrar um negócio”. Era um dicionário, aberto no verbete “Estúrdio, do português culto, estranho, desajuizado, matuto” (o Houaiss trata a palavra, hoje, como regionalismo mineiro ou gaúcho). “Esse, meu filho – disse-me ela –, é um dicionário. Sempre que tiver dúvida sobre alguma palavra, pode pegá-lo nas minhas coisas”. Aquele livrão virou meu companheiro, a partir de então – naquele tempo, meu neto, sei que é difícil pra você acreditar, mas não tinha Google. Nem Internet!!!

Minha avó, desse dia em diante, ganhou de mim a atenção que a irreverência infantil poderia tirar e pude curti-la muito. Isso me rendeu algumas de minhas mais queridas lembranças – sem querer puxar a brasa pra minha sardinha, se você puder, não me esqueça num canto qualquer e converse comigo também, de vez em quando.

Leia os clássicos. Ilíada e Odisséia (Homero), Guerra e paz (León Tolstoi), Os lusíadas (Luís de Camões), Dom Quixote (Miguel de Cervantes), O príncipe (Maquiavel), Elogio da loucura (Erasmo de Roterdã), Os três mosqueteiros (Alexandre Dumas, bom para começar), 1984 (George Orwell), Dom Casmurro (Machado de Assis), Os sertões (Euclides da Cunha), Macunaíma (Mário de Andrade)… Acho que é uma lista boa pra começo de conversa. Depois você pega gosto e cuida do resto.

Há um arsenal de opiniões sobre esses e outros livros, igualmente importantes, mas leia-os. Você verá como é útil ter a sua própria.

O Brasil está crescendo. Brasileiros, viajando pro exterior, começam a ganhar tratamento diferenciado. Estamos completando 17 anos de estabilidade econômica e isso está fazendo a diferença. Mas o Amazonas diminuiu 2%, este ano, em evidente sinal de que podemos estar perdendo o cavalo do desenvolvimento, que passa selado, à nossa porta, e nós não estamos montando. Sei que a história, você e seus amiguinhos, cobrarão isso de mim e da minha geração, com toda razão.

Tomara que, quando chegar a vez de vocês, apareçam mais líderes natos e a lucidez presida o caminho de quem chegar ao poder, antes que a tarefa de transformar a sociedade para melhor se torne maior que os governantes.

Nunca perca, querido, a perspectiva de que todos somos finitos. Procure fazer algo, todos os dias, pelo futuro coletivo. Nunca esqueça, nenhum dia sequer, de procurar Deus. Insista com todas as suas forças para tê-lo por perto. Ele não falha.

Você não tem mais tios avós, de minha parte. Não foi por falta do meu mais ardente desejo de tê-los todos aqui. Primeiro se foi Efraim, terno, meigo, atleta exemplar – atletismo, fisiculturismo, capoeira, judô, caratê -, levado aos poucos, desde que viu um amigo-irmão ser assassinado na banca de classificação de arroz do lado, em Goiás. Depois se foi Suzana, a mais velha, minha segunda e extremada mãe, levada pelo diabetes. Rubem, que me levou para o rádio e indicou o melhor caminho, a ferro e a fogo, seria o seguinte, ceifado pelo câncer. E, este ano, há alguns meses, minha querida parceira Itamar foi vitimada por uma pneumonia aspirativa, encerrando anos de sofrimento causado pelo amor desmedido por todos, que lhe deixou quase nada para ela mesma.

Éramos cinco. Resto eu. Às vezes fico sem mãos para tantos sobrinhos. Mas colho com carinho cada oportunidade de ajudá-los, vibrando com o sucesso que vão plantando.

Seus bisavós, meus pais, José, com 93 anos, e Raimunda, completando 90 em janeiro, seguraram a barra até aqui para esperá-lo.

Zé Caiá, como chamam o bisavô, é um homem muito sábio. Quando a gente queria seguir a profissão dele, pescador de mão cheia e estivador, atendia-nos e levava-nos para pescar num lago bem farto. De dia, uma festa. À noite, quando as cavernas da canoa massacravam nossas costelas e os carapanãs impediam qualquer cochilo, ele dizia: “É assim que vai ser sua vida, se você não estudar”. Nenhum de nós deixou de ir até à faculdade.

Sua vovó Raimunda é um porto seguro. Lúcida e braba que só ela, capaz da reação mais dura em defesa da dignidade de sua velhice. Quantas vezes a vi empurrando o prato vazio para o centro da mesa, quando não sobrava nada para ela, após a distribuição de nossas refeições. Mamãe é mesmo de uma generosidade impagável.

Anseio pela hora de vê-los carregando-o no colo.

Bem-vindo. Que Deus o proteja e cubra de amor. Por toda a vida.

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8 comentários

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  1. Rossiclei disse:

    Marcos Santos, não há outra palavra para descrever esta declaração de amor ao Marcos Neto … Deus abençoe esta nova família que está nascendo. Estou orgulhosa de fazer parte desta história! Parabéns …

    RESPOSTA:
    Obrigado, doutora. Acho que o Marcos Neto ficará feliz ao abrir os olhos para a vida e se deparar com seu enorme sorriso, reflexo da alegria de quem dorme com o dever cumprido – quando não está realizando pequenos milagres, nas madrugadas, à cabeceira de uns projetinhos de gente que tanto devem ao seu desvelo.

  2. Vicente Nogueira disse:

    Meu amigo, você não tem a menor ideia de como é bom ser avô. É uma experiência imposível de ser descrita. Precisa ser vivida. Hoje quando fui buscar a minha netinha amada, Ana Júlia, na creche, a pedido de minha filha que estava trabalhando, agradeci a Deus por dispor desse tempo para atendê-la e assim desfrutar da companhia desse pequenino ser que, com 2 aninhos e meio, ia na cadeirinha do carro contando as histórias do seu dia e enchendo minha alma de alegria. Que o Senhor ilumine o caminho do Marcos Neto durante sua passagem neste vale de lágrimas! Ao amigo avô e ao pai, a quem conheci recentemente e logo aprendi a admirar, o meu forte abraço.

    RESPOSTA:
    Obrigado, Vicente. É por eles, os netos, enfim, tanto quanto pelos filhos, que a gente luta tanto. E parabéns à Ana Júlia pelo avô de tantas qualidades.

  3. Rogério Camurça disse:

    Parabéns Marcos. Estendo minhas felicitações a toda sua família. É muito bom ser avô (fui a partir dos 39 anos)! Completa o sentido de nossas vidas e representa a continuidade da nossa existência.

  4. Vicente Nogueira disse:

    “Coroa dos velhos são os filhos dos filhos e a glória dos filhos são seus pais.” Provérbios 17:6

  5. Marcos,voçe não imagina o quanto fiquei emocionado ao ler tudo isso,tudo por esta grande família,pela chegada do Marcos Neto,e,por estar agora do lado do zinho,é,do zinho que nada mais nada menos,chama-se Roberval neto e fica me cutucando,vamos vô escreva alguma coisa,vamos dar boas vindas ao Marquinho.Então que Deus de tudo de bom ao Marqunho ceja bem-vindo,toda felicidade do mundo,pro Marquinho e pro Marcão,e a frase do Vicente Nogueira e vero. Um grande abraço.

  6. Vanessa Leocádio disse:

    Parabéns vovô!!!! Que o papai do céu abençõe esta nova família grandemente…

  7. francisco cruz disse:

    Que seja muito bem vindo mais um torcedor do eterno campeão. Saudaçõe encarnadas e brancas.

  8. Maria Jose disse:

    Parabéns, ser um avô é mais uma responsabilidade que temos com nossa família e com nossa futura geração. Família a base de tudo em nossas vidas, só bençaos;;;

    Saúde e Paz ao seu neto!!!