O aniversário de um patrimônio amazonense chamado Chico da Silva

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Chico da Silva e sua mãe, Guajarina, mulher guerreira e uma homenageia de muita luta a todas as mães

Chico da Silva, autor de “Sufoco”, “O pandeiro é meu nome”, “Deus menino”, “Diário de um Boêmio”, “É preciso muito amor” e “Vermelho”, entre muitos, muitos outros sucessos, está aniversariando neste 8 de maio. Trata-se do maior patrimônio da música popular amazonense, o cantor e compositor de maior sucesso do Estado.

Chico foi muitas vezes segundo colocado do saudoso “Globo de Ouro”, da TV Globo, que tinha um primeiro lugar cativo para Roberto Carlos, contratado exclusivo da casa.

O Brasil cantou com ele, na voz de Alcione, com “Sufoco” e com vários outros grandes sucessos, o último deles “Vermelho”, hoje hino de vários clubes de futebol, inclusive o português Benfica, e “O amor está no ar”.

Chico tem uma reverência especial pelo talento. Quando fui apresentador do Caprichoso, em 1987, 1988 e 1989, senti uma ausência enorme de toadas que mexessem mais com o público. Fui ao Rio e lutei, com todos os argumentos possíveis, para que ele se tornasse compositor de boi bumbá. Lembrei que ele também é sobrinho de Luiz Gonzaga, um dos fundadores do Caprichoso, cuja casa ficava em frente à dele, na nossa querida travessa Rio Branco, em Parintins.

“Você pensa que é fácil? Isso é coisa para o Ambrósio e o Raimundinho Dutra. Eles é que sabem fazer toada”, repelia Chico. Até que, depois de tanta insistência – não desisti nunca -, saiu a primeira, “Caprichoso girando”. Era tão ruim, mas tão ruim que precisei mexer na letra e na música. Ele fez, evidentemente, só pra tentar afastar o chato. Mas quando viu que, após as mexidas, a coisa ficou tragável e até foi parar na fita cassete oficial do boi – insistência do Rei Azevedo -, algo em seu interior se voltou para os bumbás.

Foi assim que, uma semana depois, em 1989, ano de uma enchente terrível, que pegou o caboclo desprevenido e causou estragos em Parintins, ele compôs “Mãe Natureza”, a segunda toada da história dele. E me disse: “Ouve aí e vê se precisa mexer alguma coisa”. Ouvi. Não mexi um ai. Nem podia. É irretocável:

“Mãe, mãe natureza

A incerteza tomou conta do lugar

Meu canto emudeceu

Meu Santo manto molhou

Meu mundo submergiu

E o meu povo chorou

 

Caprichoso urrou

Desafiando a tristeza

Numa terra fria

Sem fal, sem canhão

 

Mãe natureza

Onde está toda tua beleza

Eu te gosto, te amo e te peço

Não alague outra vez o meu chão”

 

E não demorou para sair outra, a também antológica “Azul e branco”. Quando perdemos, veio “Campeão ou não” e “Toada de amor”.

Chico da Silva cresceu ouvindo toada. Um amigo, uma vez, me disse: “A toada está para o Chico da Silva como a carruagem para Mozart. Note que todas as óperas de Mozar tem um som parecido com as rodas da carruagem, quando trafegando. Da mesma forma, toda música do Chico tem algo de toada, a batida muito parecida”. O próprio compositor, mais tarde, me disse que as batidas são tecnicamente as mesmas e podem ser perfeitamente adaptadas, ou seja, uma toada pode virar samba (como virou em “Verbena”, um pout-pourri de toadas de Ambrósio e Raimundinho) e um samba virar toada. Isso se tornou refrão, aliás, no samba-enrêdo do Breguelhegue, bloco de carnaval de Santarém (PA), que cantou Caprichoso e Garantido: “Bumba meu boi é boi-bumbá/ a toada virou samba e o bailado vou sambar”.

Quando levei para ele “Os pescadores”, ele me olhou com os olhos marejados. Conheceu muito bem meu pai. Estão citados nossos tios Santarém e Luiz Gonzaga. Até Porrotó, o irmão de Lindolfo, fundador do Garantido, aparece sem preconceito, por ter sido parceiro do velho Caiá em tantas pescarias. Note que a toada começa com a mesma nota de “The end”, de Earl Grant. Sou muito grato aos artistas do Caprichoso, que a têm usado nos últimos três anos como tema da alegoria “Figura típica regional”.

Ouça a toada, abaixo, na interpretação do próprio Chico da Silva:

Chico da Silva foi o único compositor que concorreu contra ele mesmo, no Festival Folclórico de Parintins. De um lado, pelo Caprichoso, “Escudeiros do meu boi”; de outro, pelo Garantido, “Andei, andei – Dois pra lá, dois pra cá”. É inédito e não voltará a acontecer porque os bumbás vetaram em seus estatutos compositores que componham para o outro boi.

Chico, às vezes, se mostra impaciente. Não é fácil ter vivido o que viveu e hoje suportar a ignorância dos que não o conheceram no auge. Jair Alberto, cinegrafista que veio na equipe da RBS, chamada pela Globo para ajudar na passagem da TV Ajuricaba para a TV Amazonas, conta que saiu de casa, em Porto Alegre, enfrentando uma fila enorme, para colher o autógrafo de Chico num LP para sua mãezinha.

Contei no Face e repito: ficamos impressionados quando dona Zica, da Mangueira, chamou Chico ao palco da escola, nos idos da década de 1980. Ali é um templo do samba. Ele só foi lá para nos levar, a mim e ao Valdir Corrêa, da Difusora, que estávamos no Rio para transmitir Vasco x Rio Negro, pelo Campeonato Nacional. Eu era narrador de futebol pela rádio Rio Mar. Em instantes a quadra lotou e todos cantavam os seus sucessos. Sabe quem era nosso motorista, num Fusquinha muito simples? Um fã de Chico que vivia com ele, em busca de oportunidade: Jorge Aragão.

Sabe a razão da foto que ilustra essa página? Chico, no Dia das Mães, que este ano coincidiu com seu aniversário, homenageia sua mãe, Tia Guajarina ou, como era conhecida em Parintins, Guajá. Ela foi professora primária rigorosa, daquelas que usavam a palmatória e garantiam o resultado. A filha mais velha, Ruth Prestes, foi secretária estadual de Educação e é conselheira da Seduc. Fernando Elias, um dos netos, foi secretário estadual de Infraestrutura e é o secretário-geral do Tribunal de Contas do Estado (TCE).

Olho para a foto da tia Guajá e de Chico da Silva, lado a lado, acaricio minha mãe, aqui comigo, aos 94 anos, e aí está a história de uma vida passando sob meus olhos.

Vejo minha mãe revoltada, ao sentir que as últimas luzes de seus olhos estão se apagando, com dificuldade de ouvir, controlando a pressão e brigando para dormir. Jamais se apagarão as luzes da história que ela construiu com meu pai e pela qual tantos netos, bisnetos e tetranetos são tão gratos. Ou calarão nossas vozes em coros de gratidão.

Chico, meu parceiro, parabéns. Você é um patrimônio de Parintins, do Amazonas e do Brasil.

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5 comentários

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  1. Ulisses Prestes disse:

    Minha vó uma guerreira pois vendo essa foto veio tanta coisas boas na memória tio Chico é o orgulho de. Nossa música

  2. Maria das Mercês disse:

    Texto emocionante, Marcos! Homenagem mais que merecida.

  3. Antonio Breves disse:

    Marcos uma grande homenagem ao nosso CHICO, parabéns, vendo a foto de D. Guajarina, lembro-me do nome de sua Escola. “Escola Reunidas José Esteves”.

  4. Henrique disse:

    Marcos, sua homenagem ao brilhante Chico da Silva está irretocável, assim como a toada dele descrita acima! Parabéns a ambos!!

  5. Tadeu Garcia disse:

    Amigo parabéns, fica como a toada do Paulain – ninguem gosta do chico da siva mais que eu! Um louco chato quando quer ser! Um gênio, um alvorecer resplandecente, sempre uma canção, um samba, uma toada!
    Cada expressão, uma licão;
    Um filho cuidadoso do Tamborete, boêmio que nas noites de segunda seguia com meu tio Romero Santiago, na década de 80, a tomar todas as doses na baixa, o tira gosto de galinhas roubadas nos becos da Baixa do SãoJosé!
    E aquele garoto que ficava vigiando seu pai na boemia, cansava e precisava dormir! O lugar mais confortável, seguro para um curumim, justamente era um barracão na baixa, onde mestre Lindolfo estendia e guardava o Boi Garantido, na cumieira feita de maramará, onde dormia o Garantido e acolhia um contrário de luz.
    E sempre foi meu compositor preferido, e tive a realização de ser parceiro em Sonho de Liberdade, Quero Mais, Sonhos de Ouro, e tantas outras musicas, inclusive sambas da melhor qualidade,
    É Chico você é a mais admirável geniaidade que conheço, juntamente com meu irmão Mariano Garcia, botafoguenes além da mesa de bar que me ensinaram a ter outros olhares sobre a vida.
    Vida longa meu poeta!