O batizado de Catarina Bianca

Felix Valois

Mesmo com o meu ateísmo irrecuperável, eis que me vejo em pleno templo católico, no domingo passado. Catarina Bianca, por enquanto a derradeira na fila de netos, completava um ano e ia ser solenemente batizada, ao fito de que se lhe apagasse a mácula do paganismo, afastando as influências satânicas. Foi na igreja de Nossa Senhora de Lourdes, aqui mesmo no Parque 10, onde moro há mais de quatro décadas. Lá estava eu, madrugando para os meus padrões dominicais, eis que ainda não eram nove horas da matina. Pus-me a contemplar ambiente e imagens, na busca, talvez, daquela aura que me envolvia durante a infância e a adolescência, quando, muito contrito, ajudava à missa celebrada por padre Leão Tong, redentorista, na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Eram tempos de inocência e crença irracional, tudo oriundo de um esquema familiar em que se respirava religiosidade.

Foi em vão a procura. No velho de hoje já não é possível fazer reviver a magia pueril d´antanho. Foi-se embora a ilusão do misticismo; calaram-se as evocações do sobrenatural e murchas estão as essências que faziam brotar o odor de santidade. São apenas lembranças que fiz desfilar pensativo, enquanto olhava para a imagem do Cristo crucificado, em nome do qual tantas atrocidades foram praticadas e que, ainda hoje, serve de respaldo para espertalhões ávidos pelo dízimo, o qual, inclementes, arrancam da ignorância, subtraindo-lhe os próprios meios da mais elementar sobrevivência.

Mas continua bonito o ritual. A cunhantã, que nem sabe o que é pensar, foi ungida com os santos óleos, chorou e riu ao mesmo tempo, demonstrando claramente que, dos presentes, era quem menos precisava de esforços para afastar o satanás. Não pode ser manifestação do coisa ruim a espontaneidade do sorriso, a entrega total aos braços alheios, que envolvem a pequena criatura com os afagos só prestados na mais tenra infância. É tanta a meiguice ingênua, a lassidão total da inconsciência, que custa crer alguém possa ter, mesmo que de passagem, um pensamento mal que seja em relação a ser humano tão indefeso. O pior é que há gente assim.

Tive também outra felicidade nessa minha extravagante aventura religiosa. É que reencontrei o padre Paulo Pinto, o vigário da paróquia e responsável pela iniciação de Catarina nas coisas da cristandade. A igreja em si mesma já revela o grau de dedicação do sacerdote: limpa e bem cuidada, está pronta para proporcionar conforto aos fiéis que ali vão em busca do alimento que lhes satisfaça as necessidades espirituais. Não escapa – e nem poderia fugir ao padrão – de um dos mais antigos vícios do catolicismo: vi, numa barraca em frente ao templo, um “escapulário de aço”, vendido a quinze reais.

Não importa. O padre por certo não tem culpa disso. Vale a pena, isso sim, mencionar que fui testemunha do fervor autêntico com que o sacerdote impôs à pequena o sacramento primeiro da religião. Dava para perceber que sua crença é daquelas que têm origem numa fé de verdade, a qual, exatamente por o ser, independe da busca de maiores explicações. E olha que padre Paulo Pinto não se dedica apenas aos afazeres eclesiásticos. É também advogado e, nesse campo, posso opinar com relativa liberdade, já que, no outro, não tenho interesse legítimo para me imiscuir. Temos, pois, um dublê de pastor de almas e conciliador de interesses profanos. Como essas duas facetas se chocam e/ou se conciliam é algo que me foge à percepção.

Não me arrependi dessa extemporânea e saudosista incursão numa das coisas que mais marcaram minha longínqua infância. Lá estavam as pias batismal e de água benta, o altar com sua lâmpada vermelha acesa, a indicar, se a memória não me trai, a presença da eucaristia, os santos e as santas na sua imobilidade eterna de estátuas, prontos para ouvir as súplicas com que os devotos os hão de atormentar diuturnamente. Quantas dessas demandas são efetivamente atendidas não sei dizer. Nem vem ao caso. Cuido que nem o próprio padre Paulo Pinto saberia responder a tal indagação, nem mesmo usando suas prerrogativas de advogado, as quais lhe permitiriam aprofundar a pesquisa. Sei apenas que lembrei e revivi. Se não voltei ao que era, paciência. A estrada da vida não oferece muitos retornos ao longo de sua extensão, a conduzir, inexoravelmente, para o final definitivo. Mas, confesso com toda a franqueza de que sou dotado: se eu visse o meu colega advogado com seus paramentos de gala, chegar ao altar para a celebração da missa natalina, não me importaria de retomar momentaneamente a posição de acólito. E quando ele, muito contrito, pronunciasse as palavras iniciais, dizendo “introibo ad altare Dei”, eu, ajoelhado ao seu lado esquerdo, como manda o ritual, responderia, como bom coroinha e embora já nem saiba o que é juventude: “ad Deum qui lӕtificat juventutem mea”.

Tudo lembranças, tudo saudades. Tudo inútil.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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