Vale do Javari: a luta dos povos originários pelo protagonismo político

Populações da região conseguiram locais de votação em 2014. Foto: Divulgação

No ano de 2014, o Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas realizou, pela primeira vez, eleições na Terra Indígena do Vale do Javari, que fica localizada no extremo oeste do Estado do Amazonas, na fronteira com o Peru. Ali vivem 5.500 indígenas das etnias Marubo, Matís, Mayuruna, Kanamari e Kulina. Desses, cerca de mil índios, apesar de inclusos no cadastro eleitoral, votavam em seções distantes de suas aldeias, que os obrigava a fazer longas viagens através dos rios daquela região, para que pudessem exercer a cidadania através do voto.

O Vale do Javari (região do Alto Solimões, no sudoeste do Amazonas, próximo à fronteira com o Peru) é a segunda maior terra indígena do país e conta com uma extensão bastante significativa de 8.544.482 hectares. A Campanha Javari, iniciada na década de 80 pelas organizações de apoio aos índios da região, culminou na homologação, em 2001, através um Decreto da Presidência da República, da Terra Indígena do Javari.

Essa conquista fez com que os povos ali estabelecidos desejassem dar mais um passo rumo a sua afirmação como cidadãos brasileiros, com a intenção de participar ativamente da política local, principalmente. A inscrição de muitos indígenas no cadastro eleitoral, em conjunto com a aquisição de embarcações com propulsão a motor, aliadas ao desejo de participar da vida cívica, poderiam dar bons frutos, caso não fossem estes ingredientes misturados à falta de recursos para o combustível gasto nas longas viagens necessárias ao comparecimento às urnas, na sede do município. Este conjunto de situações que se tornou terreno fértil para a atuação de candidatos mal-intencionados.

Nas eleições de 2012, ao menos mil índios receberam de políticos locais combustível, que de acordo com denúncias das lideranças indígenas, foi dado em troca dos votos, para que pudessem viajar de barco, em um percurso de 1.300 quilômetros, feito em 20 dias, das aldeias para a sede do município de Atalaia do Norte, onde votariam. Terminada a votação daquele ano, os eleitores indígenas, que esperavam que os candidatos lhes fornecessem o combustível para o retorno, foram abandonados. Sem recursos para o combustível, não puderam retornar às aldeias e, vivendo dentro de 96 canoas ancoradas em um porto improvisado, sem água potável nem saneamento básico, sofreram um surto de diarréia. Cinco crianças morreram com sintomas da doença.

O caso foi denunciado à imprensa pela Fundação Nacional do Índio (Funai), com abertura de inquéritos conduzidos pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual.

Naquela ocasião, a Funai, através da Coordenadoria Regional do Vale do Javari, à época dirigida pelo indigenista Bruno Pereira, iniciou diálogo com o TRE-AM para possibilitar melhores condições de participação daqueles indígenas no processo eleitoral, propondo a criação de seções eleitorais no interior da reserva. O TRE-AM solicitou um estudo da Coordenadoria sobre os possíveis locais de implantação das seções eleitorais nas aldeias, levando em consideração questões geográficas, logísticas e étnicas, onde as diversas aldeias pudessem ser atingidas, não só viabilizando a logística de urnas eletrônicas e técnicos pelo TRE, como o transporte dos eleitores de suas aldeias para os locais de votação.

Foto: Divulgação

A partir do estudo, iniciou-se um processo de dois anos de construção coletiva, nos quais o Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas, em conjunto com a Funai, definiram onde instalariam as seções de votação que atenderiam aos critérios levantados pelo estudo, buscando condições dignas e seguras para os indígenas exercerem seus direitos constitucionais.

Foram definidos seis locais de votação, vinculados à 42ª. Zona Eleitoral – Atalaia do Norte. as seções foram instaladas na Comunidade São Luís, do povo Kanamary, que atendeu também índios Mayuruna do médio rio Javari e Kulina do médio rio Javari, Comunidade Lobo, do povo Mayuruna, que atendeu os índios da mesma etnia das comunidades do alto rio Jaquirana; Comunidade Vida Nova, do povo Marubo do baixo e alto Rio Ituí; Comunidade São Sebastião), do povo Marubo do médio e alto Rio Curuçá, e onde votaram também os índios Mayuruna do Rio Pardo e baixo Curuçá; Comunidade Remancinho, do povo Kanamary do baixo e alto rio Itacoaí; Comunidade Paraíso, do povo Matís do Rio Branco e Coari.

Foto: Divulgação

Em 2014 iniciaram ações do Cartório Eleitoral no interior da terra indígena para o recadastramento, realizado pela, à época, Chefe do Cartório de Atalaia, Jucinara Moraes, com apoio da Funai e Sesai/MS. O recadastramento era necessário porque cada indígena, cadastrado para votar na sede de Atalaia do Norte, deveria mudar seu local de votação para Seção mais próxima de sua aldeia.

As atividades do recadastramento foram especialmente difíceis, pois foram as primeiras realizadas pelo TRE-AM dentro das aldeias, dada a distância entre a sede do município e cada comunidade que iria receber uma seção de votação.

As dificuldades de transporte e a simplicidade da estrutura montada não impediram que, resultado do desprendimento das pessoas e da tecnologia de ponta utilizada na conexão com o sistema de cadastramento do TSE, o trabalho de recadastramento dos indígenas do Vale do Javari ficasse pronto antes das eleições de 2014, que poderiam ser enfim realizadas nas aldeias.

Ao passo que os trabalhos de recadastramento eram realizados, a Funai fez os levantamentos para a logística de mobilidade dos indígenas para acessarem as seções e as estruturas físicas nas aldeias. Todo o estudo foi compartilhado entre as instituições envolvidas e as associações indígenas e lideranças de aldeias, tornando assim um processo transparente e participativo com as comunidades indígenas.

Também foi acordado que a prefeitura e Funai organizariam as estruturas mínimas nas aldeias para receber os indígenas e discutir o apoio para deslocamento dos indígenas, afim de que não se repitam as denúncias de compra de voto com combustível. A Sesai se compromete em deslocar equipes para prevenção e controle de transtornos das questões de saúde que porventura pudessem ocorrer.

No dia do pleito, a logística das urnas e equipamentos de transmissão de dados seguiu os planos da Assessoria de Planejamento Estratégico do TRE-AM. As urnas e os técnicos de transmissão percorreriam os 1.136 Km de Manaus a Atalaia do Norte em avião e iriam para as aldeias por helicópteros, em 4 diferentes rotas, que totalizaram mais de 9 mil quilômetros, nos dois turnos. Na volta além dos 2.272 quilômetros de ida e volta de Manaus a Atalaia do Norte, feitos em avião. Ao todo, foram 11.163 Km de vôo, percurso equivalente à distância entre Brasília e Moscou. A Funai deslocou nove servidores com antecedência para a terra indígena, seis dos quais presidiram as seções de votação. Os mesários foram todos indígenas das aldeias.

Foto: Divulgação

A execução dos planos foi um trabalho conjunto do TRE-AM, Funai, 8º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército, Secretaria Espacial de Saúde Indígenas (Sesai), Ministério Público Estadual e Prefeitura de Atalaia do Norte.

Os indígenas que saíram de suas aldeias para votar na aldeia mais próxima seguiram a logística planejada pela Funai, que contemplou também o acolhimento nas aldeias onde foram instaladas as Seções Eleitorais e o rápido retorno às aldeias de origem.

Após terminada a eleição, a transmissão dos dados das urnas foi feita via satélite, pelos técnicos enviados pelo TRE-AM. O detalhe importante é que, transposta a dificuldade da logística das urnas e colaboradores, enfrentada pelo TRE, e do transporte dos eleitores, a cargo da Funai, tanto a votação como a transmissão dos votos foi tranquila, sem nenhuma ocorrência que pudesse inspirar maior cuidado.

O coordenador regional do Vale do Javari, da Funai, Bruno Pereira, que acompanhou as eleições na terra indígena, disse que “ foram observados nesses dois anos de diálogos e ações que resultaram no sucesso dessas Eleições, uma profícua discussão entre o Estado e os povos da região, tendo como premissa o respeito ao tempo necessário para a compreensão dos indígenas de todo processo e a absorção da visão diferenciada deles para o acesso digno a esse direito. Uma experiência exitosa que aponta caminhos para participação dos indígenas na construção e acesso a políticas públicas diferenciadas.”

“Sinto-me muito honrada e feliz com a oportunidade de ter participado desse trabalho, tendo em vista que contribuiu para que os indígenas pudessem exercer sua cidadania com dignidade” disse a dra. Bárbara Folhadela, juíza eleitoral de Atalaia do Norte, que declarou ainda que a montagem dessas Seções de votação e a realizações das eleições nas aldeias “foi um trabalho árduo, que só foi possível graças à união entre os órgãos do TRE/AM, Funai, Associações Indígenas, Sesai e Prefeitura Municipal de Atalaia do Norte, tendo em vista o alto custo e difícil logística para implementação dessas seções. Foram levadas em consideração as peculiaridades geográficas e étnicas da região. Os índios finalmente tiveram sua vontade e direito respeitados”.

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