Maioridade penal

Pior do que a burrice é a presunção de sapiência. Nesta segunda categoria entra a pândega em que se tornou a questão da maioridade penal. Mais perdidos do que cego em tiroteio, os parlamentares não estão nem aí para os princípios científicos do direito e muito menos estão ligando para a coerência do sistema. A recente decisão de estabelecer dois tipos de maioridade é de uma indigência que seria cômica, se não fosse trágica e ofensiva ao raciocínio mais primário.

Buscarei me explicar da maneira mais simples possível já que o tema envolve matéria eminentemente técnica. Em todas as legislações do mundo há critérios para estabelecer a partir de quando uma pessoa passa a estar sujeita à aplicação das penas estabelecidas na legislação respectiva. É o que o nosso direito chama de imputabilidade, que, como é possível deduzir, se traduz na capacidade de compreensão do comportamento individual. Se a pessoa tem imputabilidade, responde por sua conduta. Se não tem, ficará sujeita a normas especiais.

Note-se que, apesar de universal, o problema não apresenta soluções idênticas nas diversas ordens jurídicas. Países há em que se adota uma postura muito objetiva, segundo a qual é estabelecido um limite etário a partir do qual se presume que o indivíduo adquiriu imputabilidade. Em outros, esse limite é desconhecido, dependendo a verificação da capacidade de exames interdisciplinares, nos quais se há de estabelecer se, independente da idade, a pessoa era capaz de distinguir entre certo e errado no momento mesmo da prática da conduta.

O direito brasileiro se filiou à primeira corrente, estabelecendo o código respectivo que “os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”. Já se vê, portanto, que a discussão que tomou conta do país diz respeito singelamente à alteração desse dispositivo, substituindo-se “dezoito” por “dezesseis”. Teoricamente e em princípio não há nada de estapafúrdio nisso. Acontece – e aqui o problema adquire outros contornos – que os argumentos dos defensores da redução não resistem a uma análise, ainda que perfunctória. São todos eles baseados num critério meramente emocional, que, por sua vez, deita raízes na crise de segurança pública que o país atravessa. Com a imprensa noticiando pelo menos dez homicídios a cada fim de semana, o populacho passa a achar que, aumentando as penas e prendendo mais gente, a coisa se resolverá como num passe de mágica. Não é assim. Da cartola de que saem as leis, não vai ser possível tirar nenhum coelho.

Vejamos. A “bancada da bala” pretende que os adolescentes, a partir dos dezesseis anos, estando sob a ameaça de penas criminais mais severas, não irão delinquir. Tolice. Ou leseira. Se assim fora, nenhum maior de dezoito anos teria cometido qualquer crime porque, desde tempos imemoriais, todas as pessoas nessa condição têm, por definição, imputabilidade e, portanto, estão sujeitas ao código penal pura e simplesmente. Impõe-se, pois, a conclusão de que a ameaça de sanção penal não é fator inibitório da criminalidade, como fenômeno social.

Na mesma linha de raciocínio pode ser considerada a elevação da quantidade e da gravidade das penas. O criminoso profissional não consulta a legislação para saber qual será a resposta da “justiça” ao ato que venha a praticar. Como dá para ver, o imbróglio começa a partir de uma visão simplista do fenômeno chamado “crime”. Se ele é visto como o simples não cumprimento de determinada norma, a coisa complica porque se trata de um reducionismo anticientífico. Para essa visão o crime é exclusivamente jurídico, cabendo apenas ao direito dele tratar, seja na prevenção, seja na repressão.

Mas não é assim que a música toca. O crime é um fenômeno social e se é verdade que cabe ao direito lhe estabelecer os perfis, não é menos verdade que o combate a ele não pode prescindir da participação de inúmeras outras ciências, que permitam ver suas origens, suas dimensões e a forma adequada de diminuir sua incidência.

Seja como for, porém, na questão específica de que se cuida, o que não pode haver, por esdrúxulo e estúpido, é o estabelecimento de dois marcos etários distintos para a imputabilidade. Para determinados crimes, o indivíduo adquire imputabilidade aos dezesseis. Para outros, ele só vai adquirir a capacidade de compreensão aos dezoito. Alguém pode ter como séria tamanha ilogicidade?

Parece que estou vendo uma reunião preparatória no Sindicato do Crime, se essa besteira virar lei. Com o fito de distribuir tarefas, organizando-as dentro de um padrão FIFA, o instrutor imporá a seguinte ordem: “João Mequetrefe, com você no comando, a equipe de mais de dezesseis está hoje encarregada de realizar apenas serviço de subsistência, praticando furtos. Sem violência. Para a barra mais pesada, estou designando o time do Zezinho Cara de Onça, que, na singeleza de seus quinze aninhos, tem o dever de comandar, com mão de ferro, todos os estupros e homicídios que nos compete realizar esta noite”.

É surreal. E é burro. Digo melhor, é presunção de sapiência.

 

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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