Jogo democrático

Felix Valois

Se não incorro em imperdoável equívoco, acho que as eleições existem para que o povo manifeste sua preferência entre as várias correntes e tendências que se enfrentam. Entendo (até eu, entendo) que, no período de campanha, os ânimos se acirrem e que, por vezes, nos debates, sejam tangenciadas regras de polidez e civilidade. São incidentes lamentáveis, mas que acabam jogados à conta dos altos interesses em disputa, de tal forma que não chegam a invalidar os mecanismos em uso. Superada essa fase, é inevitável que haja ganhadores e perdedores. Àqueles as batatas, como recomendaria o Bruxo do Cosme Velho, pela voz de Quincas Borba.

Parece-me ter sido esse o processo que se desenvolveu no Brasil até o domingo passado. Campanha, proselitismo, ideias em choque e, finalmente, a escolha. Esta foi feita. Pronto. Acabou-se. Não há o que discutir. Será que estou louco ou isso não é o óbvio? Mas não foi o que vi na capital de São Paulo na noite da última terça-feira. De repente, partindo da avenida Paulista, desce pela Consolação uma passeata com carro de som, palavras de ordem, músicas e toda a parafernália adequada. A minha curiosidade foi espicaçada e busquei saber o que era aquilo e quais os objetivos. Pois muito que bem: fiquei sabendo que era um protesto organizado pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra e pelas centrais sindicais. Finalidade: manifestar-se contra a eleição do capitão Bolsonaro para a presidência da República.

Confesso que entrei em órbita, completamente fora do eixo, pela simples razão de que não me foi possível, até agora, detectar a relação entre as duas coisas. Vamos ver: o homem disputou a eleição rigorosamente de acordo as regras do jogo. Jamais escondeu quem é e o que pensa. Claramente disse que é a favor da tortura e não negaceia elogios à ditadura militar. Tudo isso é verdade. Mas, e daí? Apesar desses detalhes, foi eleito, o que, por óbvio, significa que a maioria do eleitorado não entendeu que essas ideias sejam prejudiciais. Muito pelo contrário.

Assim posta a questão, o tal protesto era contra o que? Se reduzirmos à expressão mais simples, forçoso é concluir que se protestava contra a vontade do eleitorado, o que, numa bondosa avaliação, pode ser classificado como surreal. Dizendo de outra forma: o que se manifestava era um inconformismo com o resultado das urnas, postura que pode representar qualquer coisa, menos uma visão democrática.

Como este texto, por força das circunstâncias, está cheio de obviedades, dou-me à pachorra de acrescentar mais uma: curvar-se ao resultado pleito, respeitando a vontade da maioria, não implica em adesismo nem, muito menos, em renúncia às próprias convicções. Seria imoral mudar para o lado do vitorioso. Mas é imperioso respeitá-lo como tal. O capitão-presidente não terá deste humilde cidadão brasileiro nenhuma palavra de incentivo ou apoio às barbaridades que até agora tem pregado. Mas a figura do presidente da República está acima dessas contingências, porque representativa da própria nacionalidade, independente das divergências internas.

Fazer oposição ao vencedor é um direito de todos e um dever dos que foram por ele superados nas urnas. Isso é de primária coerência. Não há, porém, que descambar para a intolerância. Esta, por não suportar a existência do oposto, não pode levar nunca, em nenhuma hipótese, a soluções racionais. Seria o conflito pelo conflito, não o confronto de ideias com a superação normal de umas pelas outras.

Digo mais: as radicalizações do tipo da que se expressou no tal protesto são extremamente perigosas para a normalidade democrática. Se Bolsonaro é, na essência, um golpista, assim não agiu na recente eleição. Respeitou as normas estabelecidas, não reclamou de pênaltis nem de impedimentos, de maneira que não reconhecer esse fato, além de ser conduta fora da realidade, tende, no sentido inverso, a abrir as possibilidades de uma postura golpista por si mesma.

Qualquer estudante de História, por mais bisonho que seja, sabe do famoso apotegma lançado por Cesar, quando retornava da campanha da Gália. Ao iniciar a travessia do Rubicão para enfrentar a guerra civil em Roma, afirmou “alea jacta est”, o que, numa tradução livre, significa “a sorte está lançada”. É o nosso caso. Não há que desesperar. O Brasil é muito maior que Bolsonaro. Amemos e respeitemos aquele e toleremos o segundo. Sairemos desta para melhor.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

Veja também
Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *