Conheça o especialista em canto que orientou Patrick Araújo no Festival de Parintins. Leia a entrevista

Conheça o especialista em canto

Conheça o especialista em canto, dono de uma das vozes mais raras do mundo, que orientou o levantador do Caprichoso. Na foto, Sérgio Anders aplica terapia em Patrick Araújo, antes de apresentação no Bumbódromo

Patrick Araújo, 23 anos, tirou de letra o desafio de estreia no Festival Folclórico de Parintins 2022. Não foi pouca coisa: enfrentou as três noites da festa, cantando duas horas e meia em cada uma, além dos três adversários diferentes. David Assayag, Edilson Santana e Sebastião Jr., os consagrados levantadores do Garantido, estavam do outro lado. “O destaque do Festival deste ano foi o Patrick”, reconheceu David. A performance, que surpreendeu até o otimismo do Caprichoso, tem nome e sobrenome, além, claro, do talento natural do artista. Chama-se Sérgio Anderson de Moura Miranda, o doutor-cantor Sérgio Anders.

Sérgio Anders, 50 anos, é um dos grandes nomes da música na atualidade. Dono da rara voz de contratenor, registro vocal considerado como representante moderno dos castrati italianos. A diferença é que possui, dentre outras características, a presença do hormônio testosterona e o rebaixamento natural de laringe, algo inexistente nos castrati. O especialista canta músicas do maior dos castrati, Farinelli.

Sanders é professor-doutor de canto lírico da Ufam, desde 2019. Especialista em canto barroco (Early Music), mestre em performance vocal, doutor em música e com 21 anos de cargo efetivo em teatro de ópera. sua formação conta com estudos na Inglaterra, na Itália e até mesmo na Jacobs School Of Music Indiana University, na cidade de Bloomington (IN), nos Estados Unidos. Jacobs? Sim, a maior escola de música do mundo.

O currículo de Anders – nome artístico que vem de Anderson e significa “o diferente” –, detalhado, ocupa páginas e páginas. Ele está partindo, na próxima semana, para o pós-doutorado, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde fica até agosto/ 2023.

Como Sérgio Anders foi parar no Boi Bumbá de Parintins e orientando Patrick Araújo? A resposta está na entrevista, a seguir:

Portal do Marcos Santos – Como o senhor foi parar em Parintins?

Sérgio Anders – Em março de 2020 recebi em minha casa, no conjunto Dom Pedro, uma comitiva do Garantido formada por Rubens Alves, Mêncius Melo, João Paulo Faria e Dejane Sena. Foram três horas de conversa. Ficou acertado que eu trabalharia com os quatro levantadores, David, Edilson, Sabá e Márcia (Siqueira), além do Amo do boi. Acertaram valores. Ficou tudo certo. Mas nunca mais deram retorno. Perdi o meu tempo. Dez meses de espera depois, recebi uma mensagem de Whatsapp do Patrick pedindo aula particular, ele mesmo pagando. Alguns meses depois, o presidente do Caprichoso mandou mensagem, dizendo que o boi ia pagar as aulas.

 

pms.am – Quanto tempo o senhor trabalhou com ele?

Anders – De março até junho, no fim do Festival, mantendo as minhas férias, que já estavam programadas para maio. Trabalhei, março, abril, junho. Fiquei 12 dias em Parintins, na época da festa. O Patrick enfrentou três dias intensos, fora um monte de ensaios, batendo de frente com três adversários diferentes, teoricamente mais descansados.

 

pms.am – Dá para explicar, mais tecnicamente, o trabalho feito?

Anders – Trabalhamos ajustes musculares e vocais para ter resistência muscular e dar conta desse processo. Sem contar a técnica vocal. Ele teve que aprender a emissão vocal, sem se machucar, além de buscar a identidade focal, que é única. Nem gêmeos têm igual. Nada de cantar igual ao tio (Sebastião Jr.) ou ao David. Tivemos que trabalhar para ele pensar “esta é minha voz, esse é meu timbre e quando alguém me ouvir saberá que sou eu”.

 

pms.am – Qual é a voz de base dele, Patrick?

Anders – Barítono. Trabalhamos a técnica vocal para ele não se machucar, numa tessitura baritonal. Acho que a voz do boi tem que ser barítono mesmo. Edilson Santana, por exemplo, de quem sou fã, canta bem, mas é tenor. O barítono tem, a meu ver, o timbre ideal para cantar as toadas. Porém, precisa fazê-lo tecnicamente, pois esse repertório exige muito do centro alto e agudo dessa voz.

 

pms.am – A impressão, para o público menos especializado, é que o Patrick Araújo cantou com voz de peito, aquela mais pesada, o tempo inteiro. É isso mesmo?

Anders – Essa é a pegadinha da homogeneidade vocal. Parece peito, mas não é. A voz masculina é monofásica. Ele cantou peito e cabeça, usando desde as notas mais graves, muito do centro da voz mas, principalmente, centro alto, com passagens difíceis para a região aguda.

Explicando passagens de registro: toda voz tem registro grave, médio e agudo. Vozes masculinas, porém, são monofásicas, enquanto vozes femininas são bifásicas. Em termos práticos, o que isso quer dizer? Uma mulher, na sua voz de peito (registro grave), soará muito mais “peito” do que um homem cantando seus graves. Assim, existe um ajuste muscular entre essas passagens de registro (grave-médio-agudo).

Na voz de soprano, por exemplo, a primeira passagem de registro (voz de peito para voz de cabeça), pode acontecer a partir do Ré 2. Já a segunda passagem (centro alto para região aguda), acontecerá por volta da nota fá sustenido. Nessa segunda passagem, o ajuste muscular gerará um som com mais profundidade e penetração no espaço acústico. Na verdade, é um efeito que só o ouvido treinado saberá distinguir. Para a plateia, a impressão será que o cantor canta bem os seus agudos.

Se o cantor não sabe fazer esses ajustes técnicos, ele não canta agudo. Ele chega gritando, desafinando e pode terminar o show rouco.

 

pms.am – Ele fez então um ajuste de palato, que lhe permitiu transitar no belting norte-americano?

Anders – Desde a nota mais grave, até a mais aguda, o palato trabalha. A frequência fundamental de qualquer voz, quando a mesma é gerada nas pregas vocais, ninguém escuta. O que ouvimos é o resultado final, após amplificação por cavidades de ressonância e adição de harmônicos. Importante salientar que você retira o excesso de trabalho de cima das pregas vocais, ao redistribuir essa energia por cavidades de ressonância existentes no nosso corpo. Por exemplo, existem espaços ocos nos ossos da face que são preenchidos por ar ; se recebem ar, podem receber som, pois trabalham a partir do fluxo de ar, de maneira que o ar pressurizado pela musculatura abdominal seja o responsável pela voz e a pessoa não precise gritar. É o que os italianos chamam de “canto sul fiato”.

Basicamente, o cantor tem que descobrir que tem um instrumento de sopro no corpo, que é a voz. Tem que aprender a soprar a voz e não cantar como se estivesse falando. Tem que cantar pressurizando o ar na estrutura abdominal, o famoso apoio vocal, até o final da frase vocal, fazendo o “Appoggio e o sostegno”.

 

pms.am – Então o senhor abre mão da respiração alemã, no diafragma, a respiração lírica, e usa a italiana respiração intercostal, que é mais da música popular?

Anders – Uso a mesma base de apoio respiratório do cantor lírico, só não uso o som lírico, para cantores de toada, como também não o uso para os alunos cantores de MPB, sertanejo ou rock. A base de sustentação dessa voz, eu construo como se estivesse construindo uma voz operística porque o cantor de toada é de alta demanda vocal, igual a um cantor lírico. Esse cuidado técnico é saúde vocal para os cantores e eu achei muito legal que o Caprichoso tenha inaugurado essa era de saúde vocal dos cantores de boi.

Desde que cheguei no AM, tenho escutado vozes totalmente detonadas. Pessoas falando com voz rouca e tendo que cantar toada.
Se o “prime” vocal do cantor lírico começa aos 50 anos, que é quando toda a sua estrutura muscular e técnica está pronta para mostrar o melhor da sua voz, é inadmissível ver cantores “pendurando chuteiras” nessa idade. Você tem que mostrar o cantor que você é hoje e não viver de TBTs, de glórias do passado. Assim acontece com os cantores de ópera: são avaliados por hoje e se, por algum motivo, as vozes não forem mais satisfatórias, não conseguem contratos ou papéis em produções no País.

Em resumo: eu valho enquanto cantor o que a minha voz pode render hoje e ninguém quer saber o quão maravilhoso eu fui há anos atrás. Nesse sentido, uma boa base clássica te dá segurança técnica para essa longevidade vocal. Nas outras artes não é diferente. Só observar as companhias Deborah Colker (dança), o Grupo O Corpo (dança) e o Circo de Soleil, por exemplo. Seus dançarinos vieram de base clássica. Por isso fazem muito solo e muita pirueta, dentro de um contexto de dança contemporânea, e não se machucam.

 

pms.am – Qual sua análise geral do cantor Patrick Araújo?

Sanders – Quando você ouve o Patrick cantando, não ouve um cantor lírico e sim de toada. O colorido vocal, a identidade vocal, é “culpa” dos harmônicos vocais que ele possui. Mas é importante salientar que a voz de Patrick agora, aos 23 anos, não será a mesma dos 35 anos. Hoje é um barítono jovem, cantando de forma saudável. Aos 35 anos, a voz terá muito mais corpo e, se continuar estudando seriamente, não vai ter pra ninguém concorrendo com ele.

 

pms.am – Essa questão do “amadurecimento da voz” é um detalhe importante. Um cantor experiente e com técnica apurada, como o senhor, quanto tempo vai cantar?

Anders – Enquanto estiver em pé, todos devem pensar em investir na longevidade vocal. Até os 25, você vai com a natureza e a partir daí vai com técnica ou para de ir. É por isso que existe aquela história de “fulano cantava na nota tal e agora não consegue mais”.

 

pms.am – Explique melhor por que isso acontece.

Anders – Porque não tem técnica. A gente tem que pensar que todo mundo faz aniversário e a musculatura enfraquece. Técnica vocal não é apenas para tais sons, mas ajustes musculares para fortalecimento e aguentar o tranco. É mais ou menos como, no futebol, o trabalho do técnico e do preparador físico, como acontece com os atletas olímpicos.

 

pms.am – Qual sua avaliação do resultado final obtido com o Patrick Araújo?

Anders – Eu conheci um Patrick que forçava agudo. Ele gritava os agudos. Era como fechar os olhos e pedir pra voz “Vai com Deus e Nossa Senhora” e depois chorar na penitência com as falhas vocais, a perda vocal e os edemas desnecessários (risos). Hoje ele é muito mais consciente do corpo que tem e do que pode ser feito com esse corpo em função da voz. Ainda é um trabalho verde de técnica vocal.

O primeiro “boom” aparece depressa e depois precisa continuar nesse trabalho, pelo menos uma vez por semana, com rotina diária, para continuar a construção. Como diria uma professora que tive, já falecida, “a gente deveria ter duas vidas, uma para estudar e outra para cantar. Como não é possível, a gente estuda a vida inteira”.

O trabalho com o Patrick não está terminado, porque não termina. Se for para a academia de ginástica, por exemplo, fico num corpo legal, definido, meu cárdio legal… mas se abandonar, um ano depois perdi tudo que eu fiz com o personal. É a mesma coisa na música. Se você quer cantar a vida toda, precisa do trabalho de personal para a vida toda.

 

pms.am – O que houve com o cantor Axl Rose, do Guns N’Roses, que cancelou vários shows por “estar sem voz”?

Anders – Ele teve alguma patologia vocal, problema para otorrino e até cirurgia. Não sei o que ele tem. Devem ser nódulos ou até coisa pior. Como não vi, não vou chutar. No mínimo é nódulo. Quem trabalha com drive vocal, se não tiver acompanhamento, o tempo todo, vai se machucar. Tem gente que fica arranhando voz porque ouviu alguém fazer. O machucar constante cria lesões, desde as mais simples, que reverte com fonoaudiólogo, até lesões que só consertam em cirurgia de prega vocal. Foi o que aconteceu com Zezé de Camargo. Nunca mais terá voz para cantar.

 

pms.am – A idade contribuiu para esse problema do Axl?

Anders – A laringe tem uma descida eterna. Meninos e meninas adolescentes descem a laringe. Meninos mais. O pessoal acha que parou por aí, mas isso continua. O tubo vocal aumenta de tamanho. A voz muda. Na ópera, soprano começa com repertório xis, aos 19, 20 anos, depois muda aos 50. Não dá para o Axl Rose cantar uma música com a tonalidade dos 25, aos 50 anos, nessa pegada rock and roll. Talvez mesmo com o acompanhamento, ele tenha se machucado.

 

pms.am – Então aquele som firme, parecendo peito, na voz do Patrick, era outra coisa, incluindo voz de cabeça?

Anders – É uma pegada de peito. Tem que soar peito, sem ser peito. Tem que fazer belting. Tem um povo dando aula de canto, que é picareta. Ouço uns beltings que, para mim, são gritos. Tem uma galera muito picareta, pegando um monte de gente como aluno, com o discurso de “te faço cantar  como Whitney Houston, Celine Dion, Jon Bon Jovi…”. E ensinam as pessoas a gritarem desesperadamente. Algumas mais sortudas cantam bonitinho. Mas, na maioria, eu escuto os alunos se machucando e está ok para o tal professor.

Acho isso um crime!

Como alguém tem coragem de botar mão na voz da pessoa e deixar ela se machucar? Se fono ou médico machucarem alguém, o conselho vai pegar no pé. Se for um professor de canto não, não tem conselho regional para fiscalizar. Conheço gente formada em fono e canto(duas formações), que trabalham em parceria com otorrino e fazem um trabalho lindíssimo. A maioria, porém, é picareta mesmo.

 

pms.am – O senhor pratica o canto, faz treinamento vocal, ainda hoje?

Anders – Sempre que posso, faço minhas aulas de canto e tenho um apoio da minha fonoaudióloga, nessa eterna busca por estar pronto hoje para o que eu precisar cantar. Faço, inclusive,  cursos online, com um professor de São Paulo. Nesse meu período em Minas Gerais vou presencialmente ao estúdio dele, em São Paulo. Meu professor trabalha com o doutor Reinaldo Yazaki, o otorrino das grandes estrelas. É sobre colocar sua voz, seu bem precioso, nas mãos de pessoas sérias e que sabem o que fazem e não nas mãos de cantores que “aprenderam” a cantar nos bares da vida e querem se vender como vocal coachs.

 

pms.am – O senhor já trabalhou ou está trabalhando com outros cantores amazonenses?

Anders – O Caprichoso inaugurou uma nova era de cuidado vocal com os cantores do boi, a partir do Patrick Araújo. Depois fui procurado pelo levantador de toadas do Corre-Campo, Júlio Persil. Faltava apenas uma semana para o festival e eu deixei claro que, por ser trabalho muscular, o tempo era curto. “Não é um botão mágico que eu aperto e resolvo problemas vocais”, expliquei para ele. Mas me dispus a ajuda-lo com o máximo que eu pudesse.

Tive três encontros com ele, para dar um pouco mais de resistência muscular. E isso porque era uma noite só de apresentação. Não fui chamado para ver o resultado e não fui. Sou assim, mesmo trabalhando com o cantor, se não me chamar para o show eu não vou. Sei é que ele conseguiu terminar o canto e não ficou rouco. E fiquei sabendo que o boi dele foi o campeão. Fiquei feliz por ele.

 

pms.am – Algum novo cantor, sendo trabalhado pelo senhor?

Anders – Sim. O Arlindo Neto (filho de Arlindo Jr.) Ganhou de uma amiga patrocinadora um pacote de oito aulas comigo, que já terminamos. Ele me disse que já está cantando músicas que não cantava antes e que já se sente um novo cantor.

 

pms.am – Explique um pouco mais sobre a técnica usada para o Patrick Araújo atingir as notas mais altas.

Anders – A ópera surgiu na Itália e de lá para as outras escolas, francesas, alemãs e tal. O bel canto nasceu na escola italiana. Por isso se fala “canta come se parla italiano”. Já o tal belting foi pensado para a língua inglesa e precisa ser adaptado para o português brasileiro. Nossa anatomia é toda estruturada para a nossa língua vernacular, que tem uma posição natural muito mais baixa e é cheia de sons nasais. E não existe nasal, nem no italiano nem no inglês. Se falo gato eles falam cat (mais estridente). Fazer funcionar o belting no português é complicado porque, assim como preciso “italianizar” meu português para aprender o Bel Canto da ópera, vou precisar “inglesar” o meu idioma nativo para treinar belting.  Caso contrário, vai ser um show de gritos.

Entenda como funciona o inglês, do ponto de vista anato-fisiológico e transfira o português para essa posição, esse “andar de cima”. Seria uma nova maneira de falar o português do Brasil, à la inglês. Depois entenda como usam isso do ponto de vista anato-fisiológico para cantar. Está pronto o pontapé inicial para começar os estudos de belting. Faça isso com o italiano e vc poderá se aventurar pelos estudos da voz lírica.

Com o Patrick, usei base respiratória de voz lírica, posição vertical e voz lírica para graves e médios, trazendo a voz um pouco mais para a cara, sem excesso de palatização, para não criar um som lírico, principalmente no centro alto e nos agudos. Mas isso não é receita de bolo onde você repete tudo em todo mundo; cada um tem um corpo e uma voz e o mecanismo técnico tem que respeitar essas diferenças.

 

pms.am – Então o senhor dá aula privada de canto para qualquer aluno que o procure?

Anders – Sim. Faço atendimento em domicílio. Cantar é se expor muito. Prefiro que o aluno se exponha no lugar de conforto dele. Ir à casa da pessoa favorece o diálogo professor-aluno e o soltar a voz, sem tanto medo. É mais psicológico, mas funciona.

 

pms.am – O senhor criticou, anteriormente, professores de canto. Quais são suas maiores restrições?

Anders – Minha fono, Patrícia Lopes, não dá aula de canto. Ela faz laser-terapia, eletroterapia etc. Trabalha capacidade de respiração pulmonar, alongamento de musculatura vocal e tantas outras terapias vocais para cantores de alta demanda, mas sempre desenvolvendo um plano único para cada cantor. Mesmo que ela me faça alguns exercícios vibratórios e fonatórios, mesmo já tendo feito aulas de canto, ela não dá aulas de canto. Se o fono não tem formação como cantor, ele pode ainda se especializar em voz cantada. Mas, ainda assim, isso não o habilita para ser professor de canto. Por isso, na maioria das vezes, os fonos trabalham com patologias vocais etc.

Eu, por exemplo, sei muito de preparação muscular, mas se houver uma fenda ou nódulo vocal mando pro otorrino e depois ele manda para a fono na hora. Falando em otorrino,  em Manaus eu sempre indico o doutor Álvaro, otorrinolaringologista da Clínica Otorrino Center, pelo simples motivo de ter sido atendido por ele e ter percebido que ele domina os cuidados com a laringe dos cantores. Às vezes, o aluno tem refluxo e refluxo, que existem em vários níveis, e é péssimo para a voz.

Enfim, otorrino, fono e professor de canto são três área distintas. Ninguém precisa meter a colher de pau na panela do outro. Geralmente, tendem a respeitar fono e otorrino, mas professor de canto é tratado como sendo qualquer coisa. E não é só pelo público geral não. Mesmo na academia existem pessoas que acham que qualquer um canta e que qualquer um pode dar técnica vocal. Na Escola de Artes da Ufam, por exemplo, colocaram um aluno para dar aula de coral e técnica vocal. E me pergunto: “O que ele vai ensinar, se ele não sabe?”. Não é alguém que canta mais ou menos. Ele tem muitas qualidades, mas não canta nada.

Em outro evento, o Café com Arte, evento lindo da Faartes, vi placa anunciando  “Oficina de Técnica Vocal”. Fiquei surpreso porque eu ainda sou o único professor desta área na Ufam. Para minha surpresa, a oficina tinha sido dada por uma colega que, declaro, não conhece dessa ciência. Eu não me meto nas áreas dos outros colegas e nem emito opinião se não me pedirem. Gostaria muito de ser respeitado, no mínimo, e que aventureiros não invadissem meu espaço, sem conhecimento técnico prévio.

Sou aberto a trocas, a parcerias, mas acho uma falta de respeito com o professor de canto ou com alunos de canto, colocar outros nomes pra exercerem uma função técnica, sem conhecimentos técnicos. Ninguém coloca um secretário administrativo pra fazer uma cirurgia ou um violonista para tocar piano, a menos que eles tenham formações também nessas áreas. No canto, é essa falta de respeito total e aqui, na cidade de Manaus, tem sido uma luta a construção desse respeito pelo professor de canto.

Qualquer um se intitula professor de canto, não importa o seu curriculum ou a sua formação. Te jogam no mesmo cesto onde impera o desrespeito. Enfim, sem generalizar, mas existe falta de respeito com o professor de canto até mesmo dentro da Ufam. Sei que posso melindrar alguém com essa minha afirmação, mas é a pura verdade e eu não tenho medo de verdades.

 

pms.am – Isso aconteceu dentro da Ufam?

Anders – Sim. E quando fui fazer seleção para professor da Licenciatura EAD (Educação à Distância) coloquei meu nome para professor de canto. Na minha cabeça, nada mais óbvio: não tem outro professor de canto na Ufam. Pra minha surpresa, tinha concorrente. Quem? A mesma colega da Oficina de Técnica Vocal do Café com Artes. Na EAD, ela recuou da candidatura ao cargo, dizendo haver um mal entendido, algo do tipo. Ao ver a Oficina ministrada, tenho lá minhas dúvidas desse mal entendido.

 

pms.am – O senhor viu a festa de Parintins, o Festival Folclórico. Qual sua opinião sobre o canto da toada?

Anders – Fiquei muito feliz por estar inserido no Festival, pois o boi está me trazendo um reconhecimento que eu nem esperava. Mas percebi que Parintins é uma cidade onde todos acham que cantam. O ser humano é musical por natureza. Antes de o bebê falar, ele cantarola. É quase um reflexo. Todos cantarolam, mas nem todo mundo canta. O problema é achar que cantarolar é o mesmo que cantar. Cantar é técnica, é profissão, é coisa séria para quem quer ralar e se dedicar muito. Mas esse fenômeno não é só em Parintins. Por aqui também não é diferente.

 

pms.am – Qual a sua avaliação do Patrick no Bumbódromo?

Anders – Tem uma coisa muito solidificada no boi que, penso eu, é um desserviço à arte enquanto excelência: é o achar que a coisa tem que ser bruta, porque o som do boi é bruto, por exemplo. Não conheço o boi de chão do Maranhão, mas o que eu vi em Parintins não é mais folclórico, como essência. É um espetáculo digno de Circo de Soleil, da ópera do MET, do carnaval do Rio, do FAO do Teatro do Amazonas: é show. Nesse espetáculo grande, que bate de frente com o Carnaval do Rio, o som não pode ser porcaria. Pode ter percussão para derrubar a arena, mas tenha som de excelência e retorno excelente dentro do ouvido de quem canta, um ponto no ouvido. E o “cara” do som tem que ser bom, para não atrapalhar.

 

pms.am – O senhor viveu algum momento com o som atrapalhando?

Anders – Vi um ensaio do Caprichoso e achei que o vocal precisava de ajustes. Com permissão do presidente, fui trabalhar com eles. O pessoal é uma graça! Tivemos momentos muito bacanas. Quando fomos passar o som, todo o trabalho caiu. Chaparam, no microfone, a voz de todo mundo e o resultado já não se ouvia. Fui questionar e a pessoa me ignorou. E disse: “O som do boi é mais bruto”. Fui na diretoria e reclamei. Fizeram uma reunião e refizeram tudo. Depois ficou um vocal bonito, afinado. Precisava que as pontas (soprano e baixo) fossem ouvidas mais que o recheio (contralto e tenor). Ao fazerem assim, a afinação do grupo ficou muito melhor.

Tenho 21 anos de teatro de ópera e sei tudo de coro. Lá, o maestro dizia que queria o som de um certo modo, eu trabalhava com os cantores e entregava o som que o maestro pedia. Em Parintins, após respeitarem o nosso trabalho com o vocal, deu tudo certo. Tem que pensar que aquilo é um espetáculo para o mundo ver. O boi de Parintins já perdeu cara de boi de raiz e é show business, tipo Broadway. Purismo bobo só estraga voz e gera música malfeita e atrasada. Ninguém quer pagar absurdos pra ir a Parintins e ver coisa bruta.

 

pms.am – Depois dessa experiência com o backing vocal do Caprichoso, como seu ouvido reagiu à música do Bumbódromo?

Anders – A galera canta atrasada porque existe um delay, dentro da própria arena onde o show acontece. Para eles, galera, está tudo junto; para quem está no centro do espaço, ouve-se atrasado. Isso é normal, pela maneira como o espaço foi construído. Por isso, a importância de um som de excelência, com retorno de excelência, no ouvido de quem toca e canta. Caso contrário, todo mundo ficaria atrasado e o Patrick ficaria sem apoio, sem chão mesmo, correndo risco de ficar atrás da banda em tempo musical, podendo até perder a afinação.

 

pms.am – O senhor gostou da festa, no geral? E o corpo de jurados? E o julgamento?

Anders – O júri é técnico. O boi é todo cantado. A voz conduz tudo. Vi júri técnico de teatro e outras áreas, bem representado. Puderam julgar facilmente alegoria, tinta, material, produção, coisa plástica, pintura de quadro vivo, galeria de arte visual, tudo estava lá. Mas o júri da música foi uma vergonha, com dois especialistas em violão e um de piano. Cadê o cara da voz? Tinha que ter, além de alguém de um instrumento harmônico, tipo piano, representante da composição, que lida com a criação musical, arranjo, que é o que o boi faz, trabalhando com letra e música. Alguém que mexesse com esse material ia votar melhor. Não gostei daquele 10, 10, 10, 10, que é só um disfarce de quem não entendeu nada do canto. Dá 10, 10 porque não sabe ouvir. Como eu não saberia julgar gente do piano e do violão, por exemplo.

 

pms.am – O que o senhor achou das notas do Patrick e seus concorrentes, nas três noites?

Anders – Para mim, em resistência vocal, beleza de timbre e musicalidade, Patrick foi melhor. Quando David entrou, na quinta, a impressão é de que ele estava cansado. Achei que não ia terminar a noite. E o que aconteceu? Chamaram o Sabá, no final. Foi o pior dos três. Estava parecendo muito incomodado. Se dessem nove para ele seria pela história, mas banca de concurso tem que analisar o momento. É igual foto. Pode ser modelo de capa de revista, mas, se não sair bem na foto do momento, não pega emprego. É o agora que deve contar no espetáculo e não a história passada do artista. Foi horrível colocarem o David nessa posição e ele não merecia passar por isso.

 

pms.am – E nas noites seguintes?

Anders – Na segunda noite (Edilson Santana), eu escutei gritos para cima e o médio-grave não tinha volume. Uma voz doente, mas que deu conta da noite toda. Também não é voz para 10. Reconheço que, mesmo soando cansado, esgotado, com problema de fadiga vocal, o timbre é bonito, porque a voz dele é maravilhosa. Acho mais bonita que a do David. Só que está fatigado. Tem muito tempo de lagoa e passa batido nos problemas para quem não tem “ouvido de leproso” (risos). Sabá foi o melhor dos três. Talvez por ter falado à tarde, por um discurso bonito, aquela coisa de “estou saindo do boi, cuidem do Patrick, não deixem a chama dele apagar…” Talvez isso tenha contribuído para uma melhora na voz, porque isso mexe com as emoções e, talvez, o júri técnico tenha votado com o coração e não com a cabeça. Acho que o 10 do Sabá veio por isso.

 

pms.am – O Patrick Araújo foi nota 10, nas três noites?

Anders – Não daria 10 todas as noites para o Patrick. Mas o Patrick é superior ao Sabá, hoje, e a nota não seria igual às dos outros. Patrick ter 9,9 e Edilson 10, por exemplo, não dá. Ouvi, da Arena, nota quebrada, arranhada. Sou do tempo da audição fria, onde não entra história, amigos, nada. É o momento: deu, deu ou não deu. Falta o júri técnico para o canto. Nenhum dos três jurados soube julgar a voz.

Eu contava com a sensibilidade do cara do piano (nos jurados), mas quando deu 10 pro Edilson e 9,9 pro Patrick pensei: “Está surdo”. Tinha que ser um 9-7, 9-8, máximos pro Edilson, com nota a favor do Patrick. Tecnicamente falando, o Patrick mostrou-se superior aos três. Deu conta das três noites, sem quebrar nota e sem desafinar. Tem técnica e resistência. Um turista que está acostumado a rodar mundo não quer nada bruto, quer coisa bonita, todo mundo cantando certinho. Eles pagam para ver grandes espetáculos. Se fosse para ver boi de chão, ia pro Maranhão. Mas essa é uma opinião de mineiro, em sua primeira vez no Festival.

 

pms.am – Patrick criou uma voz mista, que parece peito e não é, capaz de não o machucar ou deixar sequelas que o inviabilizariam no futuro?

Anders – Alguém me falou: gostei da voz do Patrick. Por quê? Porque não soava lírico; acho que tinham medo que eu, por ser de formação lírica, descaracterizasse a voz de toada dele. Eu trouxe para o Patrick um mecanismo, uma maneira diferente de cantar, que demanda concentração e muito estudo porque você vai ensinar novos comportamentos para grupos musculares que, até então, trabalhavam de maneira diferente. Com o treino, a novidade se torna a primeira memória muscular, substituindo a anterior (a errada). A voz do Patrick, hoje, é resultado de técnica, ciência, seriedade e dedicação. Não é coisa para amadores e nem para aventureiros.

 

pms.am – Faça um resumo do Patrick, entre a hora que chegou ao senhor, até a performance no Bumbódromo…

Anders – Ele não tinha muita projeção, nem volume nos graves… Nos agudos, a laringe subia demais, apertava e ele não tinha outra saída a não ser empurrar a voz. Era grito, como vemos por aí; não era canto. Muitas vezes ele me disse: “Todo ensaio, eu terminava estourado”. Isso tive que atacar de cara, porque é questão de saúde. Vc tem que ensaiar e terminar cansado, com fome, mas vocalmente inteiro. E cantar toada não é pra qualquer um, pois o repertório é muito maluco. Você precisa ser vários cantores em um só.

Tem toada, por exemplo, em que a tessitura exige desde o registro mais grave da voz até os absurdos do extremo agudo, como o caso da linda “Tuxaua”.  E a voz precisa soar de maneira homogênea, em todos os registros, em todas as toadas, com suas alturas malucas, pois é o mesmo cantor, o mesmo instrumento vocal. Não pode ter uma voz no grave, outra no médio e outra no agudo. A homogeneidade vocal foi bacana nisso aí. O Patrick é muito esperto. Ele entendeu. Sem alterar a estrutura da voz dele, a voz foi chegando e os agudos começaram a funcionar. Peguei um cara que gostava de cantar e transformei num cantor, falando de forma ousada.

 

pms.am – O que o senhor aconselharia a um cantor que queira transitar entre os registros de peito e cabeça, como fez o Patrick?

Anders – Precisa entender o mecanismo para fazer isso. Tem um para ópera, outro para toada e outro para o rock and roll. Nesse sentido, é igual receitas de vários bolos diferentes: uma pitadinha mais disso para aquele prato, outra de mais aquilo para aquele outro, e por aí vai. Daí, o resultado do que se ouve é que se diz se é samba, sertanejo, ópera, bossa-nova… A voz é uma só, pronto, acabou. Mas precisa ser moldada para adquirir essas cores de outros estilos.

Veja, abaixo, performance de Sérgio Anders no programa “Partituras”, da TV Brasil, para entender melhor a voz dele:

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1 comentário

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  1. Livio Teixeira disse:

    Reportagem excelente! Como otorrinolaringologista e um entusiasta no canto e amante de boi bumba, o texto e a experiência profissional do Anders foram um deleite! Que maravilha de profissional tem entre nós!