A tolice de uma censura

Artigo do advogado Felix Valois

No século XV e na Europa, que era a parte tida como mais civilizada do mundo ocidental, veio a lume um livro, pavoroso por seu conteúdo e terrível por seus efeitos. Trata-se do “Malleus Maleficarum” (“O Martelo das Feiticeiras”, em português). Vejamos o que dele diz, em resumo, a Wikipédia: “O Martelo das Feiticeiras é, provavelmente, o tratado mais importante que foi publicado no contexto da perseguição da bruxaria do Renascimento. Trata-se de um exaustivo manual sobre caça às bruxas, publicado primeiramente na Alemanha em 1487 e que logo recebeu dezenas de novas edições por toda a Europa, provocando um profundo impacto nos julgamentos de pessoas acusadas de bruxaria no continente, por cerca de 200 anos. A obra é notória por seu uso no período de histeria da caça às bruxas, que alcançou sua máxima expressão entre o início do século XVI e meados do século XVII. O Malleus Maleficarum foi compilado e escrito por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger (em latim, Henrici Institoris e Jacobus Sprenger)”.

Quem o lê, ou pelo menos o folheia por curiosidade, não pode negar o impacto por ele provocado. Parece incrível que alguém pudesse levar a sério as sandices supersticiosas que ali se contêm. Mas intelectualidade religiosa de então as encarou com muita seriedade. Tanto que as pôs em prática com muito rigor e eficiência, o que resultou no emprego das mais requintadas formas de tortura física e mental em quantos (principalmente em “quantas”) tivessem a infelicidade de sofrer a acusação de relações demoníacas, cultuando Lúcifer e seu séquito. E as fogueiras se acenderam e se alastraram, queimando vivas ou em efígie, centenas de milhares de pessoas.

Pois muito que bem. Tenho e já li O Martelo. Nunca, nem em pesadelo, porém, me passou pela cabeça envergar um hábito dominicano ou evangélico e sair pelas ruas, em piedosa cruzada, à cata dos que vestem a couraça do anticristo, com o objetivo de fritá-los (ou assá-los) sem azeite e em praça pública.

Ou seja: a leitura do livro não me provocou doença mental, tendo sido por mim encarado nos precisos termos do que esclarece a editora Saraiva, na sua respectiva publicação. Eis aí: “’O Martelo das Feiticeiras’ (Malleus Maleficarum) é um dos livros mais importantes da cultura ocidental, tanto para os leitores que se interessam pela história quanto para aqueles que estudam a história do pensamento e das leis. Documento fundamental do pensamento pré-cartesiano, bem como um dos mais importantes depositórios das leis que vigoravam no Estado teocrático, revela as articulações concretas entre sexualidade e poder, e por isso é uma peça única para todos aqueles que estudam a profundidade da psique humana e o funcionamento das sociedades. Durante quatro séculos este livro foi o manual oficial da Inquisição para caça às bruxas. Levou à tortura e à morte mais de 100 mil mulheres sob o pretexto, entre outros, de ‘copularem com o demônio’. Esse genocídio foi perpetrado na época em que se formavam as sociedades modernas europeias. Uma das consequências, apontadas pelos especialistas, foi tornar dóceis e submissos os corpos das mulheres posteriormente”.

O que quero significar, com todo esse relato, é simplesmente o seguinte: um livro, seja ele qual for, não pode fazer mal a ninguém. Muito pelo contrário, e como o revelam os resultados das provas do ENEM, é precisamente a falta de leitura de um livro (insisto: seja ele qual for) que está levando a nossa juventude a níveis de mediocridade cultural insuportáveis, a ponto de “cachorro” ser grafado com “x” e já não se saber a diferença entre bípedes e quadrúpedes.

Assim não pensavam, contudo, o promotor e o juiz da 33ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro. O boletim da Conjur, publicado no dia 04 de fevereiro de 2016, informava que, a pedido do primeiro, em ação cautelar, o magistrado proibiu a venda do livro “Minha Luta”, escrito por Adolf Hitler, em 1925. Diz a Conjur: “Para o juiz, a obra incita a práticas de intolerância contra grupos sociais, étnicos e religiosos. Na decisão, ele destacou que a discriminação contraria valores humanos e jurídicos estabelecidos pela República brasileira, o que justifica a proibição”. E transcreve trecho da sentença: “Destaco que a venda de livros que veiculam ideias nazistas fere gravemente a ordem pública, pois afronta a norma penal insculpida no artigo 20, parágrafo 2º, da lei 7168/89. Dessa forma, estão demonstrados o ‘fumus boni juris’ e o ‘periculum in mora’. O primeiro, na própria demonstração da existência da obra que apregoa o nazismo; o segundo, considerando a urgência em evitar a disseminação do livro com ideias contrárias aos direitos humanos, que é fundamento e objetivo fundamental da República Federativa do Brasil”.

Que preciosidade! Que pérola da literatura jurídica! Por que eu tive o azar de faltar à aula em que tamanha cretinice tenha sido ensinada? Acho que não faltei. Nunca houve uma aula desse tipo na velha Jaqueira.

Mas já que Suas Excelências são tão ciosos da pureza intelectual do povo, lembro duas obras capazes de causar danos ao pensamento nacional: Cinderela, por incentivar a violência doméstica, através da madrasta e das irmãs Drizela e Anastácia; e O Chapeuzinho Vermelho, já que alimenta o desejo de comilança desenfreada de velhotas e de gentis menininhas. Vamos proibir, e já, esses dois exemplos de literatura perniciosa.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

Veja também
Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *