Manual para pastores e padres em cemitérios na pandemia de Covid-19

Manual para pastores e padres em cemitérios

Manual para pastores e padres em cemitérios foi elaborado na experiência do pastor Francimar, na foto ministrando o Evangelho para trabalhadores do cemitério NS Aparecida

Pastores e padres têm agora um manual de sobrevivência em pandemias, quando atuando na Capelania Funerária dos cemitérios. É o resultado da experiência de quase 800 sepultamentos acompanhados pelo pastor Francimar Pontes Soares, da Igreja Batista Liberdade Central. Ele trabalhou no cemitério NS Aparecida, em Manaus, que chama de “O vale das lamentações”, nos últimos dois meses. Recolheu experiências de encarregados, coveiros e garis, os trabalhadores do cemitério.

O pastor alerta para o risco de segunda onda de contaminação, com novo estrangulamento do Sistema Único de Saúde (SUS). “Isso aumentará o número de óbitos e sepultamentos. Estas não são informações proféticas, mas percepção e expectativa cientificas. Estamos caminhando na contramão da ciência. Não estamos dando ouvidos aos epidemiologistas, nem aos outros profissionais de saúde”, adverte.

 

História, vocação, perigo, sensibilidade, testemunho e até necessidades fisiológicas

Francimar chama atenção para a necessidade do registro histórico. “A pandemia matou mais de 30 mil no Brasil. Aqui no cemitério são mais de 1,6 mil sepultamentos, só nas quadras 73 e 74. Houve dia em que sepultamos 147 pessoas”, relata.

O clérigo afirma que a missão é tão dura que não pode ser executada apenas por voluntarismo. “É preciso a vontade de Deus”, enfatiza. Ele alerta para o perigo de contaminação e ressalta a importância da espiritualidade. O religioso não pode deixar para depois medidas espirituais, como o perdão, porque a contaminação pode matá-lo rapidamente.

A parceria com os parentes dos mortos, diante do quadro aterrador da pandemia, e o risco de hostilidade estão presentes nas recomendações.

Há 25 anos no ministério, Francimar recomenda que o pastor esteja em boa forma física e até detalhes como hidratação noturna. “Você não pode correr o risco de precisar se afastar ou se contaminar num banheiro químico”, adverte.

O pastor, provavelmente um recordista nos cultos fúnebres, revela onde encontra forças para caminhar entre o sofrimento. “Quando chego ao Vale canto o Hino da Ordem dos Pastores Batistas do Amazonas (579 CC). Quando saio, depois de um dia estressante, canto, às lágrimas: ‘Com Cristo estou contente. Ele me satisfaz/ Com esse amor do Salvador/ Agora estou contente/ Agora estou contente’. É o meu jeito de lembrar que os outros pastores estão comigo e que esse trabalho não é em vão”.

 

Veja a íntegra do texto enviado pelo pastor Francimar com as recomendações

“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação, que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus ” (2 Coríntios 1:3-4).

 

Quanto a historicidade da ocasião: a importância do registro

A pandemia do coronavírus já matou mais de 30 mil pessoas no Brasil. Creio que seja o evento sanitário mais importante e preocupante da nossa geração. Nunca se viu tanta gente morrer, em tão pouco tempo, no Amazonas. Nunca tinha visto tantos sepultamentos, num período tão curto.

Aqui no cemitério, são mais de 1.600 sepultamentos, só nas quadras 73/74. Teve dia que sepultamos mais de 140 pessoas. É um quadro, realmente, aterrador.

É importante que o Capelão tenha um diário e registre a história, na perspectiva do exercício de suas funções, para orientar as novas gerações de pregadores. O pregador não deve confiar em sua memória e nem na história ao seu redor. Não são confiáveis. Como testemunha ocular deve fazer um breve relato diário de suas atividades e eventos cotidianos para posterior registro em local próprio.

 

Quanto à disponibilidade para a missão: a importância do comissionamento

Falo não no aspecto geral, porque sou pastor há quase 25 anos. Mas do ponto de vista específico do exercício da missão.

Este não é um lugar para voluntários e curiosos. É um lugar para vocacionados.

O Vale é muito perigoso para quem não recebeu um chamado de Deus. Além disso, você (pastor) precisa arcar com os próprios custos (Deus providenciou gente para cuidar de mim).

Na verdade, ninguém quer estar nesse lugar. Mas confesso que não existe outro lugar onde eu gostaria de estar agora, porque Deus também está aqui, e tenho o privilégio de trabalhar junto com Ele.

 

Quanto a periculosidade do local: a importância da observação

Há, de fato, um perigo real de contaminação e morte. A maioria absoluta das pessoas vítimas de Covid-19, assim como as pessoas que conviveram com elas, passa por aqui. Estamos em contato diário com elas.

Não estamos imunes à enfermidade e à morte porque somos cristãos. Já sepultamos vários crentes e pastores aqui. Se ainda estamos com saúde e vivos é pela graça e pela misericórdia de Deus.

É importante lembrar que os capelães que enfrentam essa pandemia viral precisam tomar todos os devidos cuidados e usar todos os equipamentos de proteção pessoal disponíveis.

Em nosso ambiente de trabalho, os procedimentos são seguidos à risca. Todos precisam usar máscaras, luvas, protetores faciais e, frequentemente, fazer uso do álcool em gel.

É preciso entender que, em tese, todos os carros, motoristas e ajudantes funerários estão contaminados, assim como todos os caixões. Não se deve passar muito tempo perto deles, nem se escorar nos suportes que existem no local. Já tivemos casos de contaminação de coveiros por manipulação de caixões.

Os equipamentos de segurança e de uso pessoal, em hipótese alguma, devem ser compartilhados. Até mesmo as orações são feitas a certa distância. Fazer círculo de oração com as mãos dadas, nem pensar.

Não se sabe quem realmente está infectado. Isso torna o local um ambiente realmente perigoso. O uso da prudência e da inteligência podem fazer a grande diferença entre a vida e a morte.

 

Quanto à hostilidade do auditório: a importância da sensibilidade

O cemitério é o lugar onde as pessoas feridas se congregam para lamentar e expressar a sua indignação. Todos sofreram grandes perdas e estão ali pelo mesmo motivo. O auditório para quem ministramos está na pior condição emocional possível. Há muita dor e revolta juntas. O estado psicológico dos ouvintes foi abalado de forma repentina e gradativa. Está em seu estado máximo de stress.

Primeiramente, devido ao diagnóstico de uma enfermidade que pode ser fatal, do afastamento e isolamento familiar, da falta de notícias, devido à demanda nos hospitais, do falecimento do ente querido (que muitas vezes morreu por falta de assistência médica), da impossibilidade de realizar velório, da revoltante espera pela liberação dos corpos (havia corpos no frigorífico e dentro dos carros fúnebres), da espera da vez para o sepultamento, da falta de tempo para despedidas, e, por fim, do sepultamento em vala comum.

O ambiente da pregação nessas circunstâncias é o mais delicado possível. O pregador precisa “pisar em ovos” para não ser rejeitado e agredido, gratuitamente, e tornar-se o alvo da revolta de corações aflitos.

 

Quanto a praticidade da vestimenta: a importância da indumentária

Observei que as indumentárias normais para as pregações dominicais nos templos (ternos, gravatas, roupas e sapato social) são completamente dispensáveis. Falo como pastor.

Alguns colegas, que estiveram no local, não puderam exercer seus ministérios, amplamente, porque estavam com roupas inadequadas. Este é o tipo de lugar que a elegância abre espaço para a segurança, onde bonito demais torna-se ridículo e incapacitante.

Como parte do serviço é feito no descampado, estando os capelães sujeitos ao sol, a chuva, a poeira e a contaminação, fez-se necessário roupas e acessórios que pudessem nos proteger das intempéries (sapato antiderrapante, calça jeans com bolso, camisa de manga comprida de pano grosso ou jaqueta, touca, chapéu, óculos, máscara, protetor facial, guarda-chuva, e uma mochila para armazenar águas e materiais de higiene pessoal).

 

Quanto as necessidades fisiológicas: a importância do planejamento

Não há banheiros no local. Os que tem são os biológicos, de uso público, distantes e não recomendáveis. Faz-se necessários reprogramar o organismo para não ter que abandonar o local às pressas e correr risco de contaminação no banheiro.

Como o local é insalubre, não é recomendável beber água e nem comer qualquer tipo de alimento. Precisamos aguardar o horário do almoço ou o final do expediente. É importante não beber muita água, no horário do almoço, para não encher a bexiga e estimular o suor e a desidratação. O mais recomendável é a hidratação noturna.

 

Quanto a prestatividade do Capelão: a importância da utilidade

O Capelão precisa ser mais que um religioso – precisa ser útil. Não apenas no sentido espiritual, mas no humano. Ajudar no que for preciso. Compartilhar o que tem com os outros (álcool em gel, luvas extras, máscaras extras, Bíblias, literaturas, água, alimentos etc.). Criar um ambiente saudável no meio do caos e despertar o espírito de equipe.

Precisa entender que faz parte da solução e não do problema, da cura e não da doença. Não pode ser um engomadinho, um não me toque. Precisa ser gente como o povo. Conviver com os coveiros e com os garis, tem sido uma grande honra para mim.

 

Quanto a comunicabilidade do Capelão: a importância da concisão

As mensagens precisam ser bíblicas, simples, curtas, seguras, relevantes. Cheias de amor e misericórdia. Esqueça discursos políticos e salamaleques. Não é hora e nem temos tempo para isso.

Geralmente, uso a estrutura do sermão temático literal ou livre, com o objetivo específico de alento ou pastoral. O tempo é muito curto. Isto torna o expositivo inviável.

A dinâmica é a seguinte: Conversar com os familiares na chegada dos caixões, realizar a cerimônia fúnebre, acompanhar os caixões ao lado dos familiares até a sepultura e fazer a oração final. Quando esse processo terminar, ao voltar para a tenda, vocês encontrarão mais caixões, e mais famílias para serem consoladas novamente.

A introdução é muito mais um momento de ligação com as pessoas do que a abertura para a explanação. O pregador não pode ser um entre eles, precisa ser um deles. Portanto, não caia de paraquedas no local, vá caminhando com o povo.

 

Quanto a oportunidade do Capelão: a importância da visão

São muitas. Do ponto de vista da pregação em si, creio que nunca preguei e aconselhei tanta gente em tão pouco tempo. Falo de pessoas que ainda não conheciam ao Senhor. De gente com a necessidade de ouvir o que precisava dizer.

Já preguei vários sermões fúnebres, mas nunca me passou pela cabeça pregar dez sermões no mesmo dia, para pessoas diferentes. Isso só foi possível porque guardei os meus esboços para emergências. Não há tempo para preparar, só há para pregar e rápido.

Além disso, é possível compartilhar o evangelho com os funcionários que trabalham no Vale. Isso foi um prêmio para mim. Conquistei novos amigos que levarei para a vida.

 

Quanto a responsabilidade do Capelão: a importância do foco

O propósito do comissionamento não deve sair da mente do pregador nem por um momento. Precisam estar claras em sua mente. Em meu caso são dois: Glorificar o nome de Jesus através da pregação e consolar os corações com a Palavra.
As tentações para perder o foco são grandes. São alguns repórteres que querem se promover, políticos que ligam querendo informação, inimigos políticos que querem se aproveitar da situação.

O pregador precisa entender que Deus o chamou para uma missão específica e a sua satisfação será em cumpri-la. Nesse sentido, valho-me das palavras oportunas do Senhor Jesus: “Deixe os mortos sepultarem os seus próprios mortos”. Faça o seu trabalho e deixe os outros fazerem os seus.

 

Quanto a interatividade do Capelão: a importância do respeito

Padres e pastores trabalham no mesmo cemitério, mas em locais diferentes. Já exercemos os nossos ministérios debaixo da mesma tenda, mas agora estamos em pontos diferente. Apesar de não estarmos próximos, há muito respeito, admiração e compartilhamento de experiência entre nós.

O Ministério de Capelania não é uma oportunidade para defender convicções doutrinarias, mas para exercer o amor. Não tivemos NENHUM problema nesse aspecto. Pelo contrário, tem sido uma grande benção enfrentarmos um inimigo tão feroz e consolarmos tantas pessoas aflitas, lado a lado.

 

Quanto à produtividade do Capelão: a importância do preparo físico

Tem a ver com a sua saúde física e mental em dia. O pregador precisa ter resistência física e capacidade de absorção psicológica. Nessas condições, sem uma boa formação muscular, fica muito difícil cumprir a missão.

Algumas pessoas, que estão fora de forma física e descem o Vale, precisam ser socorridas porque não conseguem voltar sozinhas. Não tem cadeira no local. Às vezes é possível fazer um rodízio, numa tora de pau. A razão é que os familiares não podem ficar muito tempo ali, para não serem contaminados.

O trabalho é realizado o dia inteiro de pé, com exceção do horário do almoço. O Capelão precisa se movimentar, de uma quadra para a outra, para aconselhar as famílias. Precisa estar focado no que faz, e no porquê faz. É um trabalho cansativo, física e psicologicamente.

Por duas vezes, eu perdi a noção do tempo, de tão focado que estava na missão. Isso me despertou para descansar um pouco mais. Estava indo além dos meus limites. Mas aconteceu. É preciso cuidar da saúde e estar em boa forma física, para exercer esse tão importante ministério espiritual.

 

Quanto à espiritualidade do Capelão: a importância do testemunho

Precisa estar em dia. Pode adoecer e ser recolhido para a presença do Pai. Não pode deixar para depois questões como convicção de perdão e obediência às escrituras.

Também não deve achar que vai realizar uma obra dessas pela força ou habilidade humana. Em hipótese alguma se deve olhar o caos do ponto de vista do próprio caos, mas pelo prisma das Escrituras. Ele precisa conversar com Deus e, constantemente, ser guiado pelo Espírito Santo. Não é orar diariamente. É estar o dia inteiro em oração.

Um trabalho assim requer mais do que habilidade pessoal. É completa dependência de Deus.

Cada um faz a sua devocional como entender ser melhor.

Quando chego ao Vale canto o hino da Ordem dos Pastores Batistas do Amazonas (579 CC). Quando saio, depois de um dia estressante, canto, às lágrimas: “Com Cristo estou contente. Ele me satisfaz! Com esse amor do Salvador. Agora estou contente. Agora estou contente!”. É o meu jeito de lembrar que os outros pastores estão comigo e que esse trabalho não é em vão.

Espero que não precisemos desses procedimentos tão cedo, novamente, mas, se precisarmos, saberemos como proceder. A versão complete estará disponível em breve. Se Deus assim permitir, acrescentarei outras experiências que fortalecerão os vossos corações. Que o Senhor nos abençoe e nos proteja de todo mal. Ninguém fica para trás!

Francimar Pontes Soares

Pastor da Igreja Batista Liberdade Central.

Esse material faz parte do Programa Progressivo de Preparação de Pregadores da Palavra”

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