Burocracia e cansaço

Um dos governos da ditadura criou um tal Ministério da Desburocratização, cujo objetivo, como se há de intuir, seria evitar a repetição de despachos folclóricos qual aquele do lendário chefe de repartição que, instado a autorizar a incineração de papéis velhos e inúteis, canetou com invejável sabedoria: “Defiro o pedido, desde que extraídas e autenticadas as devidas fotocópias”.

Quem ainda não enfrentou uma fila de banco ou do INSS? E quem, depois de chegar ao primeiro lugar da fila, ainda não ouviu o solícito servidor dizer algo pelo estilo: “Não posso receber o seu pedido porque ele está preenchido no modelo DA-5 e o modelo correto para esse caso é o DA-6”?

Aqui em Manaus, há anos que a simples questão de quem pode e deve vender passes estudantis para ônibus se transformou num caso bélico, consumindo pareceres jurídicos e discussões legislativas, esquecendo-se que os estudantes têm identidade própria e que a mera exibição dela haveria de servir para o desfrute dos benefícios eventualmente outorgados pela lei.

Lembro-me de uma época, coisa de vinte anos atrás, em que a justiça federal dispunha de um funcionário especialmente dedicado à ingente e hercúlea tarefa de medir com uma régua o espaço entre o endereçamento de uma petição e o corpo da mesma. Tinha que ser, se não me falha a memória, um mínimo de quinze centímetros. Ai da parte que lá chegasse com um espaço de quatorze centímetros e meio! Era volta certa porque o tal espaço não seria suficiente para conter o despacho do juiz. E, enquanto isso, os processos se iam acumulando em sinistras gavetas, como ainda vão hoje, com a diferença de que os esconderijos agora são cibernéticos.

O universo da burocracia é autossuficiente. Não necessita de ajuda externa nem de cooperação com outros organismos. Num processo constante de retro-alimentação, a burocracia se compraz na estupidez, elaborando regras escritas ou não escritas, capazes, todas elas, de proporcionar ao monstrengo seus momentos de lascívia suprema, atingidos, por certo, quando o usuário do sistema se dá conta da rigidez da teia que se teceu em torno dele.

O Ministério da ditadura pelo visto não surtiu efeito. Quando ainda era o poderoso ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu, esse mesmo que hoje amarga os dissabores do cárcere, afirmou que “não é fácil trabalhar com a estrutura burocrática do governo federal”.

Se ele se tivesse imaginado como simples contribuinte, teria visto que o comum dos mortais não tem o privilégio de escolher a esfera da administração em que tem lutar contra o inimigo. Em todas elas a burocracia se agiganta e a todos envolve, criando um ambiente kafkiano em que temos que navegar às cegas, seguindo apenas o mero instinto de sobrevivência. IR, IPVA, IPTU, ICMS, Cofins, Refis, Selic, SUS são apenas alguns dos apelidos utilizados pelo monstro no afã de infernizar a nossa vida. Isso sem falar de que nos Tribunais de Contas, para os quais ainda não foi inventado o instituto da prescrição, os processos levam anos incontáveis com sua espada de Dâmocles direcionada para a cabeça de qualquer administrador público, do mais humilde ao mais importante e poderoso.

O então ilustre ministro desabafou: “Eu estou cansado. Mas eu tenho, por dever de ofício, de trabalhar para cada vez mais desburocratizar e melhorar a eficiência do Estado”. Também ele parece não ter logrado êxito, o que é facilmente explicável na medida em que, entregue ao laborioso afã de comprar votos de parlamentares impolutos, o hoje detento não há de ter conseguido tempo suficiente para as tarefas que seriam de seu mister.

Convenhamos em que o cansaço e a disposição do ex-ministro nos poderiam servir de guia para que pudéssemos, também, exercer elementar atributo da cidadania e exigir sermos tratados como seres humanos e não como índices de apuração estatística. Que tal, por exemplo, não ter que enfrentar filas nos Bancos? E não ter que esperar seis meses para marcar uma consulta no Sistema Único de Saúde e outros seis para realizar um exame laboratorial?

Não há de estar longe o tempo em que, com o geométrico crescimento da burocracia, vamos ter que, a cada minuto, exibir um atestado médico para provar que estamos vivos. O Ministério da Previdência já ensaiou. Os de mais de noventa que o digam. E, agora mesmo, surge um projeto de lei no Congresso Nacional, cujo escopo é obrigar os advogados a renovarem a procuração de seus clientes, a cada dois anos, em todos os processos em curso. Diz o iluminado autor do projeto que é para impedir que os advogados se apropriem de dinheiro dos clientes, sem lhes prestar as devidas contas. Como autoproclamadamente eu sofro de insuperável deficiência para entender as coisas de alta indagação, não consegui atinar com o que tem a ver uma coisa com a outra. Parece-me ser apenas mais um lampejo de gênio da ciência burocrática que continua, lépida e fagueira, a se alimentar da burrice para prosseguir no seu patriótico caminho de zombar de todos nós.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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1 comentário

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  1. Carlos Alberto disse:

    Faço minhas suas lamentações e desabafos nobre escritor pois tenho certeza é todo contribuinte mais que puto com tanta falta de respeito para convosco!