Patrimônio cultural

O governador Amazonino Mendes sancionou lei considerando a banda Blue Birds patrimônio cultural imaterial do Estado. O título respectivo será entregue no próximo domingo, 17, no Teatro Amazonas. É justo o reconhecimento e acredito oportuno transcrever o texto que publiquei quando do cinquentenário daquele conjunto musical. Ei-lo:

Em 1967, a ditadura militar completava três anos e se preparava para dar o seu grande salto quantitativo e qualitativo. Ocorreu ele no ano subsequente, quando foi editado o nefando Ato Institucional número 5. O que já era ruim, piorou. Tempos de escuridão e de sufoco, em que as liberdades, todas elas sepultadas, não logravam vislumbrar uma saída, nem a longo prazo. O ar era irrespirável e a repressão seguia em marcha batida, a soterrar, a ferro e fogo, qualquer manifestação, por mínima que fosse, de contrariedade ao regime.

Os poetas também sofriam e, talvez por isso, Thiago de Melo proclamou que “faz escuro, mas eu canto”. Juntas, música e poesia, eram frágil, mas determinado, guia para quantos reprimiam na garganta o grito que não podia ser emitido. Em Manaus, apesar de sua inegável qualidade de província, à época, as coisas não aconteciam de modo diferente. E foi nesse contexto da cidade provinciana que aqui surgiu um dos maiores fenômenos musicais: aos 17 de junho de 1967, a banda Blue Birds realizava sua primeira apresentação, ocorrida na Sociedade Atlética Guardas de Aparecida – SAGA, entidade sócio-esportiva que funcionava sob a responsabilidade dos padres redentoristas.

Foram fundadores do conjunto: Lúcio Hernani Siqueira Cavalcanti (idealizador e empresário), João Bosco Siqueira Cavalcanti (ritmista e vocal), José Chain Silva (croner), José Dibo (contrabaixista e arranjador), Antônio Carlos Chauvin (guitarrista base), Ananias Dantas Góes (guitarra solo), Irandir Monteiro (baterista) e Vagner Costa (técnico de som). Como todo organismo vivo, a banda sofreu renovações e hoje, sob a direção de Beto, ostenta em sua história mais de duzentos e cinquenta nomes de músicos que por ela passaram, encantando o nosso povo com as canções que eram um refrigério no ambiente opressivo em que vivia o país.

Dou a palavra ao próprio Beto: a ditadura “trouxe ao país uma profunda repressão aos artistas, à classe intelectual, aos estudantes e a todos os que se opunham a ela. Em Manaus, não foi diferente: os artistas eram os alvos preferidos pela repressão. Para se ter uma ideia de como funcionava: todos tinham que ser cadastrados no serviço de censura da Polícia Federal, onde os censores, além de exigirem a aprovação prévia de todas as programações dos clubes, boates, shows, obrigavam os músicos a serem fichados individualmente no setor, além de submeter o repertório que ia ser executado pelos artistas à aprovação do Departamento de Censura. Por incrível que pareça, foi nessa época que o Brasil teve o seu mais importante momento de criação na Música Popular Brasileira, destacando os participantes do movimento Tropicalista. Saliento também as figuras vinculadas às outras tendências da produção musical, sendo que era explícita a qualidade da produção e a contribuição para o panorama cultural. Além dos tropicalistas Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Betânia e Gal Costa, ótimos compositores como Chico Buarque, Edu Lobo, João Gilberto, Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, Paulinho da Viola, Roberto Menescal, Geraldo Vandré, Taiguara, Belchior e outros criaram obras primas musicais, como Disparada, interpretadas por Nara Leão, Betânia, Elis Regina, Elizeth Cardoso, Jair Rodrigues e outros”.

A verdade é que a banda Blue Birds, ao atingir o cinquentenário, é exemplo marcante de uma rara mistura: idealismo, dedicação e profissionalismo. Os grandes clubes da cidade sempre souberam lhe apreciar o valor, de tal forma que tinha ela atuação permanente em suas dependências, empolgando a juventude com a execução primorosa de canções da primeira linha. Beto, que além de proprietário da banda, tem seu nome tão umbilicalmente a ela vinculado, a ponto de ser conhecido como Beto Blue Birds, relembra as noites do Cheik Clube, Ideal, Bancrévea e Rio Negro.

Do relato emocionado que faz sobre a trajetória do conjunto, uma parte foi, para mim, de relevância especial. Cuido do trecho em que ele se refere à professora Olga Rocha, aquela mesma que conseguiu me desemburrar no Grupo Escolar Princesa Isabel. Diz ele, ao falar dos fãs: “Nesta categoria, exalto uma fã, não de uma, mas de duas bandas contemporâneas, Os Embaixadores e a Blue Birds: tia Olga Rocha, esposa do Armando Rocha, mais conhecido como Rochinha, moradora da avenida Epaminondas. Tinha um coração bondoso e zeloso para os seus. Não media esforços em passar noite indormidas, fazendo companhia às jovens suas parentas, nos bailes da Moranguinho e do Rio Negro, onde suas bandas favoritas se apresentavam”.

É saudade demais. Rendo-me ao valor e à relevância da banda, ela que nasceu quando estava eu em plena juventude. Só tenho que agradecer aos seus fundadores e a todos os que a integraram, ao longo desse meio século. E ao Beto, em especial, o abraço fraterno de admirador e fã incondicional.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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