60 anos de saudades

No próximo dia 5 de junho completar-se-ão sessenta anos da data em que meu pai morreu. Era uma quinta-feira em que a igreja católica comemorava o Corpus Christi. Pouco depois das quatorze horas, o velho levantou da rede amparado por minha mãe, sentou-se em uma cadeira, abraçou minha irmã mais nova e morreu. Curioso é que a ele eu me refira como “o velho”. Tinha ele, então, quinze anos menos que os setenta e cinco que hoje ostento e de cuja boa parte teria eu prazerosamente aberto mão em favor dele, para prolongar nossa convivência. O certo é que, na memória do adolescente que eu era, gravou-se indelével a imagem daquele homem baixo, moreno e franzino, do qual jamais ouvi uma palavra acrimoniosa e que para mim representou sempre o que mais perto pude chegar da idolatria. Como eu amava meu pai!

Quando ocorreu o cinquentenário do seu falecimento, reunimos a família e minha prima, a doutora Yole Magalhães Diniz leu um texto no qual dizia o seguinte: “O que importa neste momento em que os filhos de Felix e Lucíola quiseram aqui reunir os amigos mais do coração, para juntos prestarmos uma justa homenagem à memória do homem que foi Felix Valois Coelho, o que importa, dizia eu, é o testemunho que vos possa dar, porque fui pessoa bem presente, das virtudes verdadeiramente cristãs que ornavam o caráter e o coração de seu ilustre pai”.

E prosseguia: “Felix Valois possuía as mais raras e belas virtudes preconizadas no célebre Sermão da Montanha, o eixo central da Mensagem da Boa Nova, trazido ao mundo por Cristo. O mais admirável em sua personalidade era que essas virtudes conviviam em sua alma de escol, com a intelectualidade e com o saber.

Felix Valois era um intelectual no mais amplo sentido da palavra. Professor emérito, dominava como ninguém a nossa língua, sabia ainda latim, falava correta e correntemente o francês, sem nunca ter frequentado escolas específicas de ensino linguístico. Era um autodidata, aprendeu sozinho, vasculhando com amor os próprios livros.

Formou-se em direito, praticou a advocacia com brilhantismo, nas áreas civil e criminal, com uma particularidade: não recebia honorários de pessoas com poucas condições financeiras. Para esses advogava de graça”.

Não posso deixar de me emocionar com essas lembranças. Revivem em mim a figura do homem que, a pé, saía para trabalhar diariamente de manhã, à tarde e à noite e que, sem jamais ter se aproximado da riqueza, mantinha o respeito e a admiração dos coevos pela integridade do seu caráter, pela correção de suas atitudes e pela afabilidade no trato.

Permitam-me ouvir de novo a Yole. Assim ela dá seu testemunho: “Exerceu também cargos públicos de importância, como o de Diretor do Tesouro do Estado, no governo Álvaro Maia. Esse cargo se transformou na hoje Secretaria de Fazenda. Já perto de sua morte, o Tribunal de Justiça lhe confiou um de seus cartórios. Na sua passagem pela Diretoria do Tesouro, vale ressaltar que embora tivesse direito a carro oficial, nunca fez uso de tal regalia.

Em todos os cargos que exerceu na vida, Felix Valois se distinguiu por honestidade, pois o seu grande galardão foi a humildade. E a humildade, sabemos todos, é a virtude geradora das demais virtudes – o humilde é bom, o humilde é honesto, o humilde é misericordioso, o humilde é pacífico e, acima de tudo, é desprendido dos bens e valores materiais, que o fogo consome, a ferrugem dá e a traça destrói.

Sobre a sua humildade, vale ressaltar o quanto lhe custou o convite para ser membro da Academia Amazonense de Letras. A natureza pura e simples de sua alma não lhe permitia pertencer a uma agremiação daquele teor. Sei que só concordou em aceitar o convite em atenção à insistência de seu grande amigo, professor Péricles de Morais, então presidente da Academia. Que interessante coincidência: foi ocupar a cadeira cujo patrono é Machado de Assis, o maior entre os maiores, o príncipe da intelectualidade brasileira”.

Pouco mais teria eu a dizer, a não ser, como o faz meu amigo Clemente Hungria, que pratico aberta e declaradamente um corujismo ao contrário. Acho que tenho sobejas razões para isso.

 

 

 

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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2 comentários

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  1. Aldemar salles disse:

    Um belíssimo texto elaborado com muita emoção mais uma vez pelo ilustre dr.felix valois ! Parabéns!

  2. Roberio disse:

    Verdadeiramente grande figura de professor advogado e acadêmico. E poeta dos belos . A família por inteiro, honra seu nome . Robério Braga