Lula e o STF

Semana passada, conversei com um desembargador, dos mais esclarecidos diga-se de passagem, e ele revelava preocupação com o destino que poderá tomar o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do processo conhecido como mensalão. Ponderava-me sobre a possibilidade do uso de recursos jurídicos, não éticos mas cabíveis, como a renúncia aos respectivos cargos dos réus que desfrutam do foro privilegiado. Isso, em tese, afastaria a competência da corte maior, obrigando ao fracionamento do feito, que seria redistribuído para tantas comarcas quantos sejam os acusados. Na prática: tornaria inviável a finalização do julgamento.

Ponderei que isso me parecia altamente improvável, por um motivo transcendental, qual seja, o Supremo saber que a opinião pública não toleraria um expediente desse tipo, inexplicável a olhos leigos, de tal maneira que, em ocorrendo a hipótese, o STF haveria de encontrar mecanismos que lhe permitissem prorrogar sua jurisdição, levando a cabo o deslinde da causa.

Eis senão quando a imprensa publica o que nunca deveria ter existido. Um ex-presidente da República peita um ministro, com diálogo que raiou o território da chantagem, intercedendo em favor de um adiamento na já lentíssima tramitação do processo. O desembargador me telefonou e, estarrecido e perplexo, me disse que o episódio confirmava suas apreensões, deslocando-se o eixo da manobra para a tentativa de gerar impedimento ou suspeição nos ministros, de forma a não haver condições numéricas para que se realizem as sessões finais do pretório.

O incidente é, de fato, uma das coisas mais espúrias de que se tem notícia na história da República. O Supremo Tribunal Federal tem sido uma das instituições mais respeitadas do país, atuando com vigor e serenidade mesmo quando submetido ao tacão do Executivo, como inevitavelmente ocorreu nos tempos da ditadura. Comete equívocos, por certo, mas não a ponto de permitir seja ele considerado como um balcão de negócios, onde interesses, confessáveis ou não, possam ser discutidos e transacionados, como vulgar operação de barganha.

Indiscutível que errou o ministro Gilmar Mendes quando aceitou um convite, no mínimo inusitado, para comparecer a um escritório de advocacia, onde um ex-colega seu recebia a figura do ex-comandante da nação. O anfitrião fez papel vergonhoso de menino de recados e o seu hóspede, este então transbordou qualquer limite de razoabilidade quando se dirigiu ao julgador da Suprema Corte nos termos em que o fez, numa clara, indigna e absurda ingerência em assunto da mais alta relevância, assim como se estivesse ele pedindo um favor entre amigos.

O doutor Mário Bezerra de Araújo, meu amigo de longa data e homem de escorreito proceder, não se conteve e esbravejou, também por telefone: “Não dá para acreditar, Valois. Onde é que chegamos?” Efetivamente é inacreditável. Quando, por portas e travessas, se busca vilipendiar a própria base de sustentação do Estado Democrático de Direito, revela-se uma profunda abjeção por tudo aquilo em que consistiu a luta de milhões de brasileiros pela conquista e mantença de sua autodeterminação.

Meu sentimento de brasilidade chora lágrimas amargas. São lágrimas de pura vergonha, eis que me vejo humilhado e vilipendiado. Jamais pensei pudesse presenciar um dia tamanho exemplo de vilania, um verdadeiro bofetão injurioso desferido na face da nacionalidade. Os mais piedosos podem querer acenar com o gesto apaziguador do perdão. Mais adequado talvez seja o desprezo que, na sua neutralidade, há de permitir ver passar essa demonstração de como um ser humano pode descer tão baixo na escala da dignidade e do respeito.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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2 comentários

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  1. thadeu seixas disse:

    Ao me deparar com a nefasta notícia, dois pensamentos me afloraram. O denunciante é pessoa polêmica, já acusado de se aproveitar do cargo em proveito próprio. Por sua vez, o denunciado é reconhecidamente useiro e vezeiro em práticas condenáveis que vilipendiam as relações institucionais entre os poderes e ferem de morte os princípios constitucionais. Com o desenrolar das notícias, pela reação das partes e pelo passado do ex-presidente, inclino-me a acreditar na versão do Ministro Gilmar. Preocupante também, a entrevista do presidente do PT, conclamando a “militância petista” ao enfrentamento e jogando gasolina na fogueira. Acredito que deveria receber algum tipo de interpelação. Preconceitos à parte, quanta diferença no comportamento dos nossos dois últimos presidentes. Um Estadista, o outro….sindicalista. O que se podia esperar?

  2. Wagner disse:

    Doutor, lamento lembrar-lhes que se for por esse motivo transcedental, por palavras de membros do próprio STF já saíram coisas como:
    – “opinião pública não pode pautar o tribunal” (Cezar Pelluzo, sobre aborto de anencéfalos);
    – “o Supremo não se deixa permear pela opinião popular suas decisões (Celso de Mello, no mesmo caso)
    – “o papel do STF é manter a governabilidade (Marco Aurélio, no episódio sobre o Palloci).