24 de Maio

Na minha infância, a predominância da Igreja Católica, como religião, era indiscutível, sem necessidade de recorrer a institutos de pesquisa para estabelecer essa verdade. Éramos todos envolvidos pela aura de misticismo das pregações e dos ritos, a maioria deles de pompa e beleza inexcedíveis, como era o caso das missas cantadas no Natal e no domingo de páscoa. Na pequena igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, fincada ali na esquina das ruas Leonardo Malcher e Luis Antony, disputávamos o privilégio de participar das celebrações, envergando nossas batinas brancas, com faixas vermelhas, e sob o comando seguro de padre Leão, redentorista dos melhores e figura humana da alta qualidade.

Os cânticos enterneciam e empolgavam, misto de beleza e simplicidade, sem embargo da rigorosa observância do latim. Quando o celebrante entoava, no altar, o “Gloria in Excelsis Deo”, ouvia-se, do coro, comandado pelas irmãs Feitosa (Didi e Dadá), a pronta e misericordiosa reposta do “Et in terra pax hominibus bone voluntatem”. A maioria por certo não entendia o significado, mas era tamanha a fulgurância do momento que os participantes acompanhavam com a mais contrita e respeitosa admiração.

No calendário católico, o dia 24 de maio era dedicado a Nossa Senhora Auxiliadora. Suponho que ainda seja, mas as coisas já não são como na época a que me estou referindo. Lá na nossa paróquia nada tínhamos a ver com os festejos. Estes ficavam por conta dos salesianos, responsáveis pelos colégios Dom Bosco e Auxiliadora, que abrigavam, respectivamente, rapazes e moças. Nem pensar nessa história de escola mista.

O ponto alto era a procissão, que saía da igreja localizada na rua Silva Ramos. Minhas irmãs (“Ó se me lembro, e quanto!”) envergavam suas fardas de gala, rigorosamente passadas e engomadas por minha madrinha Irene, e, com orgulho pouco disfarçado, subiam a Leonardo em direção ao local da concentração. A boina azul e as luvas brancas davam o indispensável toque de solenidade ao uniforme com que as jovens iam prestar reverências à santa de sua devoção.

O cortejo abria com a banda do colégio Dom Bosco. Os moços, devidamente engalanados e concentrados, eram parte indissociável dessa festa salesiana. Competia-lhes, não sem um namorico aqui e outro acolá com suas colegas auxiliadoras, dar o acompanhamento musical para a ocasião, já que nunca ninguém imaginou uma procissão sem os hinos respectivos.

A imagem da virgem vinha em destaque absoluto, com paramentos rigorosamente cuidados e luxuosos. Uma coroa reluzia na cabeça e um manto de veludo lhe pendia dos ombros, num envolvimento completo. Das fileiras, erguia-se a exaltação, que a memória ainda me permite lembrar: “Mais que aurora tu surges radiosa/Toda a terra a teus olhos sorri/ Mesmo os astros que os céus embelezam/Perdem todo o fulgor junto a ti”.

A cidade parava para ver. A procissão seguia pelas ruas sem carros daquela Manaus de antigamente e nossa gente se persignava à passagem da santa, enquanto as moças entoavam o estribilho: “Brilhas qual sol radiante/Pura és como a lua/E a estrela mais bela/Tem inveja à beleza tua”, para logo em seguida estender a louvação nestes termos: “Doze estrelas circundam-te a fronte/O teu cetro é de ouro e marfim/O teu manto cerúleo e esplendente/É refúgio de paz para mim”.

Disso tudo só me resta a lembrança. Mergulhei no mundo ou o mundo me tragou. Não sei. Sei apenas que estive nesse passado e nele conheci as duas criaturas amorosas que foram minha mãe e meu pai. Nem mesmo sei por que recordei tudo isso. Talvez simples falta de assunto. Que seja. Não me arrependo.

Tempos de ingenuidade e ternura. Saudosos tempos.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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