Greve na Ufam

No segundo semestre de 1994, cheguei à Faculdade de Direito para cometer mais uma aula. Naquele tempo eu ainda fazia a concessão de acordar de madrugada, de forma que às nove da manhã, em ponto, estava entrando em sala, para mais uma sessão sobre dolo, imputabilidade e outros assuntos do gênero, muitos dos quais tenho hoje como absolutamente inúteis ou, no mínimo, supérfluos. Sentei, fiz a chamada (que coisa anacrônica!) e segui a caminho da lousa. Não havia nenhum pedaço de giz. Nem um toco sequer, para fazer remédio. Saí e andei de seca a Meca à procura do, então, indispensável material. O velho prédio da Praça dos Remédios foi revirado de alto a baixo, e nada. O estoque de giz tinha acabado. Pronto. Dias depois dei entrada no meu pedido de exoneração.

Certa vez contei esse episódio numa crônica. Um idiota, desses que nada produzem mas adoram criticar o trabalho alheio, enviou um comentário dizendo que eu deveria ter metido o toco de giz na lousa. Claro que eu não poderia tê-lo feito. Primeiro porque não existia o tal toco, segundo porque minha anatomia deve ser diferente da do mentecapto comentarista. Mas, deixa pra lá. Não foi para isso que comecei a escrever estas mal traçadas.

Na verdade, o meu ponto está em que, passados dezoito anos, parece que as coisas não sofreram muita modificação. Vejo nos jornais que os professores da Universidade Federal do Amazonas decidiram entrar em greve por tempo indeterminado, constando de suas reivindicações melhoria salarial e das condições de trabalho. Pelo visto, nada mais justo, já que existe a informação de que um professor, com titulação de doutor, é remunerado com uma quantia que faria rir um monge de pedra. De outra face, é quase impossível o acesso a modernos materiais inerentes ao exercício da profissão.

Um reacionário empedernido trouxe seu protesto até mim. Não sei por quê, mas trouxe, assim como se fosse eu alguém com capacidade de julgar a justeza ou não dos movimentos grevistas. Dizia ele que a tal greve foi decidida por menos de dez por cento dos membros da associação de classe correspondente, o que, a seu juízo e vezo, é fato capaz de subtrair a legitimidade do movimento.

Não sei se isso ocorreu de fato. Admitindo que seja procedente essa referência ao percentual, não consigo vislumbrar de que forma o dado possa interferir na relação de causa e efeito entre a greve em si mesma e os objetivos a que visa. Só quem leva uma vida de completa alienação não pode compreender que as reivindicações de classe são conduzidas por entidades jurídicas, mas essas entidades sempre puderam contar com o trabalho efetivo de pouquíssimos abnegados, que se destacam da maioria silenciosa e inerte precisamente porque decidem mostrar ao mundo que as coisas não caminham no “manso lago azul” debuxado pelos pincéis oficiais.

Não é de hoje que o ensino público, em todos os níveis, vem sofrendo um processo crescente de degradação. A má formação nos fundamentos vai necessariamente refletir nos estágios superiores, onde, por definição e sem elitismo, há de estar a nata do conglomerado pensante da Nação. Ora, se o país não liga para essa obviedade, há que ser advertido do brutal erro em que está incorrendo, até para permitir que se venha a buscar uma mudança de rumo, capaz de dar um norte à questão.

“Ninguém faz graça com a barriga vazia”, diz uma velha canção popular, acrescentando que “passar fome nunca foi filosofia”. Muito mal remunerados, os professores da rede pública brasileira hão de estar no limite de suas paciências para enfrentar esse quadro cruel e inexplicável. O movimento que deflagraram há de merecer todo o respeito de quantos, como eu, ainda insistem em sonhar com a construção de um país que respeite seus filhos, tratando-os como tal e não como rebotalho.

Minha inútil, mas total solidariedade.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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