A vida como ela é

Lisboa – Minha missão nesta cidade já se tinha encerrado, tirei férias e me preparei para trocar a Europa episódica, em crise e sempre fascinante, pelo destino que sempre foi o meu: a luta política direta, clara, honrada e sem subterfúgios. Minha filha Carolina, porém, terá de ficar aqui até 30 de junho e isso me obrigou a prorrogar a permanência até 24 de maio, de modo a deixá-la coberta financeiramente, logisticamente, até o final do seu ano letivo, que é semelhante ao dos EUA e diverso da prática brasileira.

Tenho muita honra em, após 34 anos de vida pública, tendo sido Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, líder de Governo e, por oito anos inteiros, líder da oposição no Senado, ainda ter de fazer contas, economizar trocados e viver os mesmos problemas que afligem a classe média brasileira. Só poder andar de cabeça erguida, respeitado pelo Brasil inteiro – até pelos que me combatem com sinceridade – já significa muito para meu coração. As falsas reputações vão sendo despedaçadas e meu maior patrimônio se conserva de pé: respeito a coisa pública, não tenho interesses empresariais, digo o que bem quero de quem queira dizer, lego aos meus filhos e netos o orgulho de não fazer parte da triste “república do rabo preso”, dos mensaleiros, dos “cachoeiras”, das negociatas. E prefiro ser fraudado em eleições do que me rebaixar a fraudá-las.

Pouco mais de duas semanas em Lisboa não matam ninguém, sinceramente. E a cidade é bela, atraente, cativante.

Hoje (escrevo na noite de sexta) apartei briga de marido e mulher. Donos de uma tasca perto de onde resido, percebi, ao pedir meu bolinho de bacalhau, que a moça tinha o olho esquerdo marcado por um soco. Fiquei quieto, embora incomodado.

Conversa vai, conversa vem, a dissenção conjugal veio à tona e, esquisitamente, fui posto na condição de árbitro. Opinei, claro. Perguntei ao homem se ele era responsável pela marca que sua esposa ostentava. Respondeu-me que sim; afinal, ela era “coisa” dele.

Minha paciência se esgotou: “se o senhor quiser ‘desabafar’, coloco-me as suas ordens. Desabafe em cima de mim. Poupe sua mulher pelo amor de Deus”. Ela própria interferiu, dizendo que o que se tinha passado era mesmo coisa do passado. Voltei à carga: “que passado é esse, capaz de deixar marcas com aspectos tão recentes? Fulano, o nome disso, desculpe-me, é covardia. Ali em frente à embaixada americana está cheio de soldados. Vá lá e bata no olho de um ‘marine’ daqueles. Quem sabe ele responderá de modo tão passivo quanto a sua esposa o fez”.

Aparentemente foi um mau momento. Tenso, sem dúvida que foi. Mas me constrangeu, sobretudo, a atitude submissa dela, diante de uma brutalidade que continha traços culturais dele. Grave: os dois trabalham na mesma tasca, lutam a mesma luta”.         Quando passou a tristeza, percebi que me tinha enraizado mesmo na vida lusa. Até briga de mulher já separei por estas bandas.

 

Arthur Virgílio Neto

Arthur Virgílio Neto

* Arthur Virgílio Neto é diplomata, ex-líder do PSDB no Senado e prefeito de Manaus

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