Livros didáticos e besteirol

Os livros que “ensinam” nossas crianças e adolescentes há muito padecem de um cretinismo crônico, do qual só se salvam mesmo as indefectíveis honrosas exceções.

Na área da História, por exemplo, fica difícil compreender por que D. Pedro I, tido e havido como herói nacional, ao proclamar o “Independência ou Morte”, como símbolo máximo da revolta brasileira contra as cortes de Lisboa, logo depois abandona o trono do nosso glorioso império e vai ser rei precisamente de Portugal. Nenhuma referência às condições sociopolíticas em que se deu o episódio, assim como se fosse algo decorrente do mero arbítrio do príncipe, um desabafo de ordem doméstica, sem nenhuma relação com a realidade nacional.

A abolição da escravatura surge como um gesto magnânimo da princesa Isabel, motivado apenas por um sentimento piedoso de Sua Alteza em relação aos negros que padeciam o cruel regime. As questões econômicas não recebem qualquer menção. Logo a seguir, o pai da nobre figura, retratado como um velhinho bondoso, de repente se transforma em exilado, sem que ninguém explique os motivos do primeiro golpe militar de nossa história republicana, o que, em sequência, vai deixar perplexo quem quiser compreender as origens e fundamentos da ditadura militar que se abateu sobre nós a partir de 1964.

Isto para não falar no período intermediário, de onde os didáticos historiadores tiram um Getúlio Vargas pai dos pobres, sem mencionar os horrores do Estado Novo e as atrocidades praticadas pela polícia getulista. Passou-se uma borracha sobre o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, de triste memória, arma letal do regime contra a liberdade de imprensa. A Coluna Prestes parece nunca ter existido e acho difícil que algum estudante hodierno tenha ouvido falar de seu comandante, até hoje ausente do panteão dos heróis nacionais.

Dir-me-á um crítico que se trata de um caso puro e simples de visão individual do observador da história.   A crítica já seria em si mesma uma tolice, já que não é possível tratar a História como conto de fadas. Mesmo, porém, fosse ela procedente, os livros didáticos não escapariam da necessidade de rígida profilaxia, quando nada para ensejarem uma visão universal do conhecimento.

Lembro um exemplo: quando meus filhos ainda freqüentavam os cursos fundamentais, chegou-me às mãos um livro que se pretendia de geografia. Nele estava escrito, com todas as letras, que o ponto extremo leste do Brasil era a Ponta Seixas, no Cabo Branco, no litoral de Pernambuco. Àquela altura escrevi que meu amigo paraibano, Dr. José Trindade Martins, me assegurou que o seu Estado natal ainda não havia deliberado abrir mão de sediar tão importante acidente geográfico, o qual continua fincado ali bem na frente da bela cidade de João Pessoa.

Daí a razão para o famoso ENEM proporcionar preciosidades como as que transcrevo, colhidas ao acaso no imenso acervo de besteiras que o tal exame tem proporcionado: “Não cei se o presidente está melhorando as indiferenças sociais ou promovendo o sarneamento dos pobres”. “Me pré-ocupa o avanço regressivo da violência urbana”. “O convento da Penha foi construído no céculo 16 mas só no céculo 17 foi levado definitivamente para o alto do morro”.

Por essas e outras é que estão passando a exigir de quem conclui curso superior um provão de capacidade para o exercício da respectiva profissão. Talvez com isso se evite que quem se forjou na leitura dessas preciosidades didáticas se transforme no advogado que confunde habeas corpus com Corpus Christi, ou no médico que, na ausência de vitamina B-12, receita duas doses de B-6.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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