Falsa cultura

Felix Valois

“O óbvio ululante”. Depois que Nelson Rodrigues, grande dramaturgo e não menor reacionário, cunhou essa expressão, é comum ouvi-la pronunciada por supostos intelectuais. Acreditam estar dando uma de espirituosos e externando uma cultura que, suponho, foi adquirida a partir de profundas leituras, incluindo o manuseio e a convivência com os clássicos. Pura armadilha da língua que, sonora e bela, induz os menos avisados a esses trejeitos de falsa cultura, capazes de produzir, quando muito, consternação na plateia.

O adjetivo “perfunctório”, por exemplo, é muito útil para referenciar um engano que, infelizmente, não é tão raro quanto deveria. Refere-se ele à superficialidade de um trabalho, indicando o cumprimento de uma simples rotina. Pois muito que bem. Assistia eu a uma palestra, salvo engano durante a Conferência Nacional da OAB, e o orador, enfático e pernóstico, ressaltava que as conclusões por ele apresentadas eram “produto de uma pesquisa perfunctória”. Foi o que bastou para despertar a veia irônica de um gozador irreverente que assim ponderou: “Talvez por isso suas conclusões sejam tão úteis quanto a discussão sobre a quadratura do círculo”. O palestrante não entendeu absolutamente nada e foi guardando seus papéis, certamente pensando em quanto era perfunctória a ignorância do seu interlocutor.

Já tive oportunidade de mencionar alhures a indagação de um aluno, que me interpelou perguntando o significado de “obista”. Eu não sabia e ninguém neste mundo poderia saber, pela razão muito simples de que a palavra não existe. Paciente, ponderei-lhe se ele não estaria querendo se referir a “lobista”, termo muito em moda depois que o lulopetismo colocou a propina na ordem do dia. Quase se aborreceu o moço e teve a generosidade de me explicar, escandindo o termo: “Venha ver aqui. Está escrito o-b-s-t-a”. Só pude me lembrar, então, das lições de dona Olga Rocha, ainda no terceiro ano primário, no grupo escolar Princesa Isabel: a consoante não seguida de vogal fica na sílaba que a precede. Mas, por comiseração, sugeri ao jovem que invertesse a posição das duas primeiras letras para ter uma exata noção do conteúdo da sua caixa craniana.

“Resquício” o dicionário diz significar “pequeno fragmento de um material; resto, resíduo”. Houaiss esclarece que ele provém do espanhol com a mesma grafia e, na origem, diz respeito “a abertura entre o gonzo e a porta; fenda”. Um colega meu, em tom absolutamente sério e compenetrado da gravidade de sua afirmativa, disse-me que, naquele momento, achava ele que ainda havia “restícios” de dúvida quanto à veracidade da versão apresentada por seu cliente em determinada causa.

Acho que ele estava apenas tentando dar uma nova forma, mais compacta, ao substantivo. Hipótese não muito semelhante àquela em que a moça escreveu “femenino”. Adverti-a de que talvez ficasse mais elegante se ela substituísse o segundo “e” por um “i”. Boquiaberta e mal podendo conter a estupefação diante da minha ignorância, ela foi bem sucinta na explicação: “Não posso fazer o que o senhor sugere. A palavra deriva de “fêmea” e, como até o senhor pode ver, em “fêmea” não existe um “i” sequer para fazer remédio. Como, no mesmo contexto, ela havia escrito corretamente a palavra “masculino”, perguntei-lhe por que razão a grafia não era “mascolino”, uma vez que, supunha eu, na privilegiada inteligência da jovem, o termo deveria provir de “macho”. Ela me deu o golpe de misericórdia: “O senhor hoje está irreconhecível. Será que é difícil de entender que “masculino” provém de “másculo”? Tive que me render a tamanha demonstração de erudição filológica.

Uma última lembrança e encerro. O rapaz dizia que aquilo era a coisa mais “espatafúrdia” que ele tinha ouvido em toda a sua vida de estudante de língua portuguesa. Fui eu cair na besteira de me meter de novo no que não era chamado e disse que, ao se referirem aos sinônimos de excêntrico, bizarro ou singular, os dicionários se reportam ao adjetivo “estapafúrdio”. “Como assim?”, retrucou-me. “O que o senhor diz não faz nenhum sentido e se os dicionários registram isso estão redondamente enganados”. E prosseguiu, com eloquência e didática impressionantes: “A palavra é “espatafúrdia” mesmo, porque traduz a imagem de uma pata que, por irremovível aborrecimento com o pato, resolve fazer furdunço”.

Eis aí como a última flor do Lácio pode ser melhor conhecida e manejada a partir de lições tão singelas. Afinal, ela já demonstrou sua fortaleza, resistindo ao vocabulário do Lula e da Dilma. Ainda bem que meu pai não vai ler este texto. Ele morreu há cinquenta e nove anos e morreria de novo, vítima de apoplexia.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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