Flor do Lácio

Olavo Bilac, cognominado “o príncipe dos poetas”, entendeu que a língua portuguesa é a “última flor do Lácio”, considerando-a “inculta e bela” e “a um tempo, esplendor e sepultura”. Haveria de saber o que dizia. Sua obra, até hoje lida e cultivada, é prova de que o vernáculo não guardava segredos para ele, que navegava entre as palavras com a facilidade de capitão de longo curso.

Mas o que aconteceu com a língua que, hoje, da maneira como é usada e manuseada há de causar contorções tumulares em Bilac, em Machado e em Camões? Outro dia li um texto em que o sujeito dizia algo mais ou menos assim: “Um eu jamais faria o que ele fez”. De onde será que ele tirou esse artigo indefinido para colocá-lo antes do pronome pessoal do caso reto? Minhas professoras Olga Rocha e Neusa Lemos fariam um imenso xis vermelho na prova de um moleque de nove anos de idade que escrevesse tamanha barbaridade. E o professor Antônio da Encarnação Filho (saudades do velho mestre) haveria de tomar tamanho susto que se queimaria com o charuto que gostosamente degustava antes do terrorismo antitabagista.

Vez por outra, na linguagem coloquial, ouve-se isto: “Meu irmão, quando em vida, não perdia um jogo do Flamengo”. Fico imaginando como poderia o finado irmão, “quando em morto”, comparecer a alguma partida de futebol, a não ser que fosse para purgar seus pecados e alcançar a salvação, assistindo a uma exibição da seleção do Mano Menezes. Punição mais que exemplar, capaz de purificar qualquer pecador e conduzi-lo ao céu ou ao nirvana, ou seja lá aonde vão os supostos espíritos dos crentes.

Em matéria de estrangeirismos, a coisa está à beira do caos. Claro que não filio entre os puristas intransigentes, aqueles para quem “ludopédio” seria preferível a “futebol” e “bola ao cesto” deveria ocupar o lugar de “basquetebol”. Óbvio que não. A língua é um ser vivo e é impossível impedir que ela interaja com o meio em que se desenvolve, atividade em que se insere a importação e a exportação de vocábulos. Ninguém vai dizer “fita” ao invés de “filme”, da mesma forma como não se há de pensar em obrigar à substituição de “vitrine” por “escaparate”. (O editor de texto até sublinhou em vermelho a palavra, tão esquisita ela é).

Mas que hoje em dia, depois da ascensão da informática, há um exagero gritante, isso há! Por que cargas d’água tenho que ler no computador que “o programa está sendo inicializado”? Para onde se meteu o tempo “iniciado” do velho e cansado verbo iniciar? E, digam-me em nome da sanidade, por que foram buscar no “start” inglês um pretenso verbo “estartar” para tomar o lugar do “começar”? E, pelo visto, “baixar” deve ter sido cassado por alguma Medida Provisória ou por decisão do Supremo, porque somos obrigados singelamente a “fazer download”. Vale mencionar, também, que “deletar”, apesar de sua origem indiscutivelmente latina, merece de Houaiss a observação de que é “palavra a evitar” já que temos “apagar, suprimir, remover”.

As violações são inúmeras e se colocam ao lado de uma tendência para o rebuscamento da linguagem. Para alguns, falar difícil seria sinônimo de cultura. Nesse campo, tenho de reconhecer, minha profissão é a contribuinte de maior peso e por diversas vezes já abordei o mal que o “juridiquês” nos causa. Vejam esses exemplos que outrora anotei:

“Cártula chéquica” é o apelido de uma inocente folha de cheque.

“Digesto obreiro” significa, por incrível que pareça, a Consolidação das Leis do Trabalho, a qual, apesar de chata como ela só, não merece tamanha ofensa.

O velho e cansado Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com greve ou sem greve, é conhecido entre os iniciados como, pasmem, “Autarquia ancilar”.

Ao mandar alguém para o xilindró, já vi um juiz que determinou fosse o infeliz recolhido ao “ergástulo público”. Nessa coisa, o cumprimento da pena de prisão há de ser mil vezes pior do que numa simples cadeia.

Esta última está em O Globo de ontem, na coluna de Ancelmo Gois. Em petição de habeas corpus, uma coleguinha carioca elogia o magistrado, referindo-se à “proficiência do inguinoescrotal julgador”. Como pondera o cronista: “Proficiência é habilidade, competência, aptidão. Inguinal é relativo ou pertencente à virilha. Já escrotal é… você sabe”.

Pobre flor do Lácio…

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

Veja também
1 comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. LUIZ CARLOS RIBEIRO MARQUES disse:

    Pois é. É um tal de protocolizar que não acaba mais. Cadê nosso PROTOCOLAR, tão mais simples e objetivo de se pronunciar?!!?
    E, no caso da colega, porque não consultou um dicionário antes de se aventurar a tentar escrever palavras desconhecidas!!!!!
    E ainda querem acabar com o exame da Ordem. Pelo amor de Deus!!!!!