Suprema discussão

Qualquer advogado, com o mínimo de frequência aos fóruns de justiça, já há de ter estado numa daquelas rodinhas que se formam nos corredores. São profissionais que esperam audiências (elas nunca começam na hora marcada), outros que terminaram de massagear os umbigos nos balcões dos cartórios, ou ainda os que, não tendo causas, estão ali por absoluta falta de coisa melhor para fazer. As conversas geralmente são as mesmas, com as lamúrias sobre o emperramento dos processos e a falta de consideração da maior parte dos funcionários com os advogados, situação agora agravada diante da absoluta omissão da Ordem.

Nesses bate-papos, alguém sempre lembra a assertiva mais do que velha de que “alguns juízes pensam que são deuses; outros têm certeza”. O curioso de notar é que recentemente foi acrescentada uma terceira categoria nessa classificação. Diz-se, então, que nela se enquadram os juízes cujo elevado pensamento se desenvolve de acordo com o seguinte raciocínio cartesiano: “Como nenhum deus (com letra maiúscula ou minúscula, a critério do narrador) é juiz, eu sou muito mais que qualquer um deles”. Impossível encontrar exemplo maior de modéstia, com todos os seus consectários de dedicação ao serviço, humanitarismo e urbanidade.

Pois muito que bem. Não é que essa tendência para a supradivinização da toga sofreu rude golpe? Dois ministros do Supremo Tribunal Federal (logo de onde!) mostraram de público, por todos os canais midiáticos possíveis, que estão impregnados de muitos dos defeitos que marcam, com ferrete indelével, a humana condição. A inveja, a mesquinharia, os preconceitos afloraram sem máscara na pendenga proporcionada pelos doutores Cesar Peluzo e Joaquim Barbosa, deixando boquiabertos os adoradores do Olimpo, incapazes de imaginar que em tão augusto recinto pudesse haver lugar para sentimentos de tal jaez. Pura ingenuidade.

De preguiçoso foi chamado o ministro Barbosa. Sem querer ouvir falar dessa história de entregar a outra face, o ofendido, depois de um singelo autoelogio, retrucou com a afirmativa de que o ministro Peluzo é um caipira. E acrescentou, para não ficar por baixo: arrogante e presunçoso. Os mimoseios seguiram nesse tom, sem que se tenha tido notícia de alguma intervenção de Zeus ao fito colocar um basta na desavença que catalisou as atenções do mundo jurídico nacional.

Eis senão quando minha velha avó me aparece em sonho e, entre um balançar e outro de sua cadeira de vime, me diz: “Meu filho, não esqueça de que quem diz o que quer, ouve o que não quer”. “Mas, vó — ponderei –, entre varões tão ilustres é possível que ocorra discussão desse nível?” A velhinha me olhou, sorriu com sua boca quase sem dentes, e proclamou sua máxima suprema (sem trocadilho): “Vamos ser bestas!” E se foi.

Cá fiquei eu a meditar sobre o exemplo. O saldo, na verdade, me parece positivo. Explico-me: se, mesmo no mais elevado tribunal, os juízes experimentam raiva e discórdias pessoais, tem-se que, pelo menos por definição, são humanos. Em o sendo, hão de estar aptos para compreender as angústias e as aflições dos que lhes batem às portas, em busca da mitigação de injustiças, clamando contra a prepotência do Estado, bradando contra a violência policial, pleiteando, enfim, o mínimo de atenção da parte dos que detêm poder quase absoluto sobre a liberdade e o patrimônio dos outros.

Fez-se, portanto, a luz. A esperança é a de que, por uma questão de mera hierarquia, ela se espraie para os outros tribunais, contaminando-os com esse sopro de humanidade, que as conversas inicialmente referidas faziam acreditar ausente e de difícil restauração. Que venham mais discussões se tiverem elas o condão de obrar esse milagre. Que proliferem as disputas se lograrem fazer brotar a compreensão de que a prestação jurisdicional é um serviço público e que por ela pagamos todos.

De minha modesta parte, eu gostaria mesmo de ver era os ministros Cesar Peluzo e Joaquim Barbosa discutindo sobre o preço da matrinxã, na Feira da Panair. “Que oceano de amor não sairia!…”

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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