O senhor Travassos era versado em língua portuguesa, aluno que fora e amigo que era do professor Antônio da Encarnação, ilustre mestre das escolas públicas amazonenses.
Nascido em Portugal e para aqui vindo já depois da adolescência, o professor Encarnação mantinha um forte sotaque lusitano que ele fazia questão de acentuar, compondo-lhe a respeitável figura rotunda tanto quanto o inevitável charuto que ele não largava nem em sala de aula. (Naquele tempo ainda não havia surgido a horda dos tabachatos, com seu terrorismo verbal e fotográfico, a transformar o cigarro e congêneres na peste negra do século).
Era implacável o professor na exigência de que seus familiares e alunos observassem os cânones do vernáculo. Iniciar uma frase com pronome pessoal do caso oblíquo, por exemplo, era o mesmo que proferir uma ofensa impublicável, levando o mestre às raias do desespero.
Almoçava um domingo o Sr. Travassos na casa do professor Encarnação quando assistiu ao seguinte diálogo entre dois filhos do mestre:
— Me dá a farinha.
— Não ta dou.
–E por que não ma dás?
— Porque não ma soubeste pedir.
A um ex-aluno, (no caso, eu próprio, que tive a honra e o privilégio de lhe assistir às aulas) que encontrou com a filhinha de três meses no colo, o professor Encarnação perguntou com a maior naturalidade:
— É virago?
Uns cinco segundos se passaram até que o então jovem se desse conta (caísse a ficha, na linguagem modernosa) de que, vindo de quem vinha a pergunta, significava querer saber se a criança era do sexo feminino, para então responder respeitosamente:
— É, sim, professor.
Conta-se que em certa noite do mês de agosto, quando o calor de Manaus mostrava toda a sua exuberância, o professor Encarnação terminara a obrigação diária na Escola Técnica de Comércio Solon de Lucena, então funcionando no início da Avenida Sete de Setembro, próximo à praça da Prefeitura, no mesmo prédio onde os augustos legisladores municipais já velaram superiormente pela ordem jurídica da cidade.
(Diga-se de passagem e em abono da memória do professor que antes dele toda Manaus só conhecia aquela escola como Solón de Lucena, mas a coletividade teve que ceder à cruzada por ele empreendida contra a “deturpação do nome do legislador grego”).
Mas, dizia eu, o professor Encarnação vinha caminhando calmamente pela avenida, entrou no Bar Americano para tomar uma cerveja e seguiu seu trajeto para casa.
Na altura do Colégio Estadual, eis que se lhe depara uma jovem caboclinha, cujos trajes denotavam integrar ela a categoria que a juventude de então, galhofa e preconceituosamente, chamava de chofer de fogão.
Dirige-lhe a palavra o eminente mestre:
— Aonde ides, bela pirralha?
Na péssima iluminação da rua, a moça ouviu aquela voz tonitruante, com um linguajar no mínimo estranho, e só conseguia divisar a brasa do charuto. Era, com certeza, alguma assombração. Dispôs-se a correr.
Alteando a voz, o professor Encarnação conclamou:
— Não corrais, não corrais.
Foi a gota d’água.
Com medo ou sem medo, a caboclinha entendeu que o atrevimento tinha passado dos limites, mesmo que se tratasse do próprio satanás em pessoa.
Voltando-se e de dedo em riste, a nossa jovem conterrânea disparou, com a maior força de que dispunha:
— No curral tá a tua mãe, seu velho.
Corrida dela e passo cadenciado do mestre separaram os personagens e puseram fim a uma inocente e erudita paquera.

Felix Valois
* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...
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