
O banho de cuia não era bem com essa panelinha, mas a cara da molecada, entre o riso e o sofrimento, era essa mesma. Foto: blog Bode com Farinha
O fim de semana prolongado nos traz uma revoada de manauaras rumo ao interior do Amazonas. Invejável. Perfeitamente compreensível. É lá que estão as raízes do povo amazonense e a capital reflete, em grande parte, o êxodo rural das décadas que sucederam o advento da Zona Franca. Ficaram para trás pessoas e lugares queridos, momentos inesquecíveis e um modo de vida peculiar.
A crueira, por exemplo, a nova geração desconhece. É o último subproduto da mandioca. Tem aparência um tanto grotesca, com seu cinza “tuíra”. As casas todas tinham pilão, dos grandes, com uma mão-de-pilão enorme, para esmagar o produto e transformá-lo em pó. O resultado podia se ver nos mingaus, uma ração extra de carboidrato, para enfrentar o dia-dia duríssimo. Ou, suprema delícia, nos fritinhos de crueira.
São poucos os interioranos, principalmente da região do Médio-Baixo Amazonas, que não saíram no braço, entre irmãos, por causa dos fritinhos de crueira. Eles iam saindo da frigideira e o pau cantando, porque este ou aquele tentava ser mais esperto e levar a parte do leão.
Sabe a briga atual por vaga no vídeo game? Ou o arranca rabo pela banana verde frita? Era daí para pior, a disputa pelo fritinho de crueira.
Chico da Silva compôs “Tempo bom”, que presenteou para os filhos, dele e do produtor, contando um pouco da vida na Parintins de antigamente. Mas não dava para contar tudo.
O compositor Carlos Paulain, em “Tempos de trapiche”, revela a “guerra de guri”: a garotada ia para o rio Amazonas, fim de tarde, “pular n’água”. Na margem havia muita argila, durante a vazante, e a molecada usava aquilo, chamado de guri, como tobogã. Até que alguém fazia bolinhas, iguais às de gude, pegava a baladeira e começava a tal “guerra de guri”.
Ninguém se machucava. Naqueles tempos os meninos deviam ser feitos de borracha. Basta lembrar que o rio Amazonas, com águas turvas, não faz a menor concessão para se ver nada e a moda era “pular flechada”, um mergulho de cabeça no desconhecido.
Todos ou quase todos estudavam. Parintins detinha a menor taxa de analfabetismo do Amazonas. Mas sobrava tempo para praticar esportes, empinar papagaio (pipa) e saracotear pelas casas dos amigos. Esportes? Futebol, vôlei, atletismo, handebol, basquete, ginástica rítmica, ginástica olímpica. Tudo com o incentivo dos estudantes de Educação Física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que tinha na cidade um Campus Avançado do Projeto Rondon.
Tudo isso passa como um filme na mente da nossa gente. É justa a revoada para o interior no feriadão. É lisura, dirão alguns, que não permite viajar para Miami. É também opção para muitos. São aqueles que ainda hoje se arrepiam, quando lembram do gélido banho de cuia, no camburão, no meio do quintal. A água fria atravessava os ossos. O que a gente não sabia era que ali, a cada cuiada, as almas de todos estavam sendo impregnadas por uma cultura ancestral e lembranças eternas.
Saudades de Parintins. Um salve para nosso modo de vida. Viva o povo amazonense.
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