Colégio Estadual

Colégio Estadual

Por Felix Valois

Está em ruinas o prédio do Colégio Estadual do Amazonas. As escadas de madeira ameaçam cair de podridão; as goteiras são tantas e tamanhas que, ao vê-las deixar passar a água, impossível não lembrar da afirmação de que “chove mais dentro do que fora”. Não há mais instalações sanitárias minimante dignas e, em algumas partes da estrutura, até árvores estão crescendo. A natureza retoma seu lugar diante da humana negligência.

Tenho consciência plena e absoluta da minha insignificância e, pois, do pequeno alcance da minha voz. Nem por isso me sinto autorizado a deixar de cumprir o que é quase um dever cívico. Dirijo, então, um apelo, humilde mas veemente, ao senhor governador do Estado: por favor, não deixe que o pior aconteça. Empregue sua autoridade em favor de um patrimônio cultural do Amazonas, que foi berço e inspiração para seguidas gerações de brasileiros. Por ali passaram e ali se forjaram figuras públicas da maior relevância na nossa história e todos esses homens mulheres, de ontem e de hoje, jamais deixaram de manifestar orgulho dos tempos em que o colégio os acolheu.

Aos mais jovens e aos desmemoriados preciso de transmitir algumas lembranças. De logo, é imperioso fixar que o ensino público era respeitado pela singela razão de que era eficiente. Os professores eram altamente capacitados e mereciam, sempre, o respeito de alunos e de seus familiares. Assim funcionava: depois de um não obrigatório “jardim da infância”, a criança entrava no curso primário, composto por cinco séries. Chegava-se à última com a idade mínima de dez anos e, então, havia que ser feito o “exame de admissão”, que permitia o acesso ao próximo estágio, o curso ginasial. Eram quatro as séries e, ao final delas, estava o jovem teoricamente preparado para ler e entender, dispondo das noções básicas de conhecimento nas mais diversas áreas.

Começavam as opções. O curso colegial se bifurcava em “científico” e “clássico”, destinando-se o primeiro aos que demonstravam pendor para as ciências exatas, enquanto ao outro acorriam os que se achavam vocacionados para as humanas. Ainda havia o “pedagógico”, voltado para a formação de professores, e o curso “técnico de contabilidade”. Cada um deles tinha a duração de três anos que, uma vez cursados com êxito, ensejavam ao jovem prestar vestibular para qualquer faculdade superior.

Em Manaus, o Instituto de Educação do Amazonas e o Colégio Estadual do Amazonas eram as expressões maiores desse modelo de ensino, sendo certo que, na terceira etapa, só o Estadual oferecia clássico e científico, enquanto o pedagógico era exclusivo do IEA.

Pois muito que bem. Eu mesmo, de 1958 a 1960, cursei o clássico no vetusto estabelecimento. Era um templo de saber e emprego a expressão sem nenhum resquício de filigrana literária. Farias de Carvalho nos deslumbrava com as belezas da literatura brasileira, sendo ele próprio poeta do melhor jaez. Com Alberto Makarem e Ribamar Costa percorríamos os meandros das literaturas francesa e inglesa, respectivamente. Vilar Câmara insistia em tentar fazer com que a gente entendesse os mistérios da matemática. Otávio Mourão ficava com a física; ainda ouço sua voz tonitruante no dia em que me pegou numa tentativa de cola (quanta vergonha! Mas é verdade; a física me era, e ainda é, impenetrável). Francisco Queiros, com sua vibrante oratória, nos dizia o que havia para entender em história do Brasil. Mário Ipiranga, em geografia geral, nos fazia conviver com Copérnico e Galileu. Sebastião Norões, o intelectual, cuidava da geografia do Brasil e aludia aos altos fornos de Volta Redonda. Donaldo Jaña ensinava que, em espanhol, diz-se ao par: “te quiero”. Afonso Nina, em História Natural, apresentou-nos a Darwin e à citologia. Agenor Ferreira Lima, intransigente no ensino da língua-mãe, fez-nos passar noites em branco na tentativa de interpretar os cantos da “Eneida”. E Manoel Otávio Rodrigues de Souza nos levava ao deslumbramento quando, com voz roufenha, descerrava as cortinas que encobriam as vastas paisagens e as belezas da Grécia e da Roma antigas. Como esquecer o resumo da aula sobre a guerra de Troia? Ei-lo ai, de memória: “1 – Paris, filho de Príamo, rei de Troia, na Ásia Menor, raptou Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta. 2 – Heróis gregos: Ulisses, Aquiles, Ajax e Agamenon. 3 – Heróis troianos: Heitor, Paris e Enéas. 4 – As verdadeiras causas da guerra de Troia.”

Dá ou não para sentir saudades? É possível evitar um profundo desgosto ao ver o local onde tudo isso aconteceu simplesmente ruir? Eu, pelo menos, não consigo evitar. Olho para o prédio e as recordações vêm com força tsunâmica, ao mesmo tempo em que um fúnebre pesar me ocupa a mente.

Volto, então, a Sua Excelência, o governador do Estado. Por favor, dê um presente ao povo que duas vezes o escolheu: determine já, imediatamente, sem mais delongas, para ontem, a restauração do prédio do Colégio Estadual do Amazonas. Ser-lhe-emos gratos e Vossa Excelência terá prestado serviço da mais alta relevância para nossa história.

Tereza Cidade

Tereza Cidade

* Tereza Cidade é jornalista.

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