O outro lado da BR-319, para o MPF ver de pertinho

O outro lado da BR-319

O outro lado da BR-319 inclui o tráfego de 150 carretas bitrens, como essa, sobre a ponte do Paraná do Araçá. Foto e vídeo: Marcos Santos

A BR-319 (Manaus-Porto Velho) é um mundo à parte. Magno, taxista, acorda cedinho todos os dias, na maioria às 4h, e dorme após as 21h. Trabalha levando cargas e passageiros para Autazes (122km) e Careiro Castanho (100km). Atravessa quatro a cinco vezes, indo e vindo, as balsas sobre os rios Curuçá e Autaz Mirim – aquelas das pontes que caíram. Perde, em filas, nos dois quilômetros que separam os dois rios, até quatro horas por dia. É cruel, mas esse é o lado humanitário dessa “rodovia federal”. Uma realidade que o Ministério Público Federal (MPF) precisa ver de pertinho.

As balsas, colocadas no improviso para substituir as pontes, já podem pedir lugar no Guiness Book. São as mais lentas do mundo. Neste momento, com o rio secando, atravessam menos de 100 metros. A milímetros.

Os trabalhadores das balsas, pressionados pelo estresse da população usuária, que não é pequena, sofrem. São eles que, de vez em quando, deixam de levantar a ponte de desembarque. Isso faz com que a atracação empurre os precários aterros, criando “mondrongos” e deixando o solo fofo. Daí para um carro pequeno, ônibus ou caminhão ficar atolado é um passo. Isso leva à paralisação da balsa, do tipo “ninguém entra, ninguém sai”. Formam-se filas imensas e horas de espera.

O carapanã é outro componente digno de registro. Por algum fenômeno da natureza, eles devem estar fazendo congresso internacional permanente, tanto no Curuçá, quanto no Autaz Mirim. Devem ter sido escolhidas a dedo: são maiores e ferram mais dolorosamente.

Os motoristas mais experientes fecham as janelas dos carros, ligam o ar e não abrem porta de jeito nenhum, por causa das carapanãs. Todos se perguntam, como os trabalhadores das balsas aguentam ficar no local e suportar tanta ferroada?

 

Regras das balsas

O leitor precisa conhecer algumas das “regras das balsas”.

Carro-tanque, aqueles que levam combustível, não pode atravessar com outro tipo de veículo. Isso significa que, quando chega a vez deles na fila, fazem a viagem solitariamente. Problema é que isso deveria valer para os carros cheios. Deveriam ter horário para atravessar como, por exemplo, entre meia-noite e 6h.

Os motoristas, malandramente, vão cheios e voltam vazios. Mas, mesmo quando não estão mais transportando combustível, exigem a regra de travessia prioritária e solitária. Contribuem, significativamente, para o caos nas balsas.

 

Carretas

As carretas são, também, caso à parte, no que chamamos de o outro lado da BR-319.

Uma carreta entre Porto Velho e Manaus, dentro das balsas que fazem esse transporte, pelo rio Madeira, custa em torno de R$ 10 mil. Vindo rodando, pela BR-319, esse custo cai para R$ 4 mil.

É por isso que, não importando se elas destroem a rodovia, centenas de carretas, carretões, daqueles bem porrudos, passam pelas duas balsinhas do Curuçá e do Autaz Mirim.

Pior: há cerca de uma semana, os produtores de soja de Roraima alugaram 150 carretas bitrens. É a hora de colher a superprodução que ocupa todo o lavrado roraimense e cria centenas de armazéns gigantes na capital, Boa Vista. Elas vieram de Porto Velho, passaram nas tais balsas precárias, atravessaram pela balsa da Ceasa e foram para Roraima, via BR-174 (Manaus-Boa Vista). No Estado vizinho serão abastecidas com soja e seguirão para o porto graneleiro de Itacoatiara – tadinha da AM-010.

As carretas bitrens passaram de duas em duas, ocupando, completamente, as balsas do Curuçá e do Autaz Mirim.

Uma rodovia precária, que mal dá pro gasto dos seus milhares de usuários diários, recebeu carga pesadíssima. Ninguém fiscalizou. Não houve qualquer protesto. A Polícia Rodoviária, responsável pelo policiamento do trânsito nas rodovias federais, nem tchum para as bitrens ou para as filas que elas formaram, durante vários dias, nas balsas.

Veja vídeo da passagem de uma das 150 bitrens, passando sobre a ponte do Paraná do Araçá:

 

Porta do turismo

A BR-319 é a porta principal do turismo de pesca esportiva, o que mais cresce no Amazonas. De Vila Gutierrez, o local aonde chega e sai a balsa de travessia da Ceasa, no Careiro da Várzea, até a Vila do Araçá, está concentrada grande parte desses turistas. É pelo Paraná do Araçá que se chega às “Três Bocas”, a bifurcação do Paraná do Mamori e Lago do Mamori (além do próprio Araçá).

A partir das Três Bocas, os pescadores acessam os lagos da região, localizados nos Municípios de Careiro Castanho e Autazes. Tucunaré, Tracajá, Maçarico, Juma, pelo Paraná do Mamori. Mira, Capivara, Jurará, Zé Açu, pelo Lago do Mamori.

Essa “porta do turismo” começa na Ceasa, numa balsa com jeito de abandonada, de onde partem os barcos de travessia “especial”, fora da balsa que transporta carros. Esses barcos só saem quando estão completamente lotados, com gente saindo pelo ladrão. O “quadro de horário” delas é “mais ou menos de meia em meia hora… se lotar”.

Agora imagine um gringo, norte-americano, europeu ou asiático, do tipo “mochileiro”, que tente encarar o turismo de pesca esportiva nessa região – muitos se aventuram assim. Enfrentará, depois do choque de infraestrutura e cultural na Ceasa, o gargalo das duas balsas, na travessia de dois rios, sem que haja nenhum aviso quanto as vicissitudes que o esperam, como os carapanãs.

Mas não é o turismo a principal “alternativa à Zona Franca de Manaus”, que o País oferece ao Amazonas?

 

MPF

O Ministério Público Federal (MPF) é a última esperança dos usuários da BR-319. É uma questão humanitária.

Uma sugestão: ponham um carro na faixa de terra entre os rios Curuçá e Autaz Mirim. São dois quilômetros. Deixem os procuradores presenciarem essa realidade cruel do homem que vive nessa região.

Havia quem, morando em Manaus, trabalhasse em Autazes, Careiro Castanho, Manaquiri, Nova Olinda do Norte e outros Municípios do entorno. Dava para ir e voltar no mesmo dia. Agora não dá mais.

E quem mora nessa região e trabalha em Manaus? Antes da prevaricação do Governo Federal, que levou à queda das pontes, eles tinham emprego e podiam usufruir da moradia junto à família. Agora, onde estarão? Provavelmente em alguma favela, em submoradia, se é que não perderam os empregos.

As novas pontes estão em obras. Mas o resto da estrada é um lixo. É buraco e poeira no verão, buraco e lama no inverno. E olha que até melhorou!

A obra na ponte não pode amortecer a indignação com o atual estado de coisas na BR-319. Não deve ser assim. Os Estados Unidos usam o famoso “onde houver um cidadão norte-americano…”. O Brasil tem o dever de olhar para os milhares de sofredores, usuários da BR-319… que são cidadãos brasileiros.

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