
Cada boi de Parintins tem seus artistas que materializam ideias em desenhos feitos à mão. Fotos: Peta Cid.
Texto: Peta Cid (Especial)
O espetáculo protagonizado na arena do Bumbódromo pelos bois de Parintins, Garantido e Caprichoso, é pensado, criado, pesquisado e desenhado meses antes da festa. No processo de criação, entre o pensamento e a ação, estão mãos habilidosas que dividem pincéis, grafites, nanquim, lápis de cor e aquarelas para materializar ideias em desenhos feitos à mão que ganham o colorido e os elementos imaginados para as três noites de apresentação.
Os sonhos, as viagens ao mundo dos espíritos, o imaginário das lendas começam a ganhar forma a partir do trabalho dos garotos dos croquis. Com o toque da sutileza e o dom natural do parintinense, eles desenham alegorias e fantasias que chegarão aos artistas para sua execução.
O talento que é nato de quem cresceu com a arte nas veias foi incentivado no passado pelo missionário italiano Irmão Miguel de Pascale, ganhou reforço nas escolas de arte dos bumbás e oficinas nos bairros, renovou os traços no Liceu de Artes e aperfeiçoou as técnicas no curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Amazonas.
Mas vitrine mesmo é a Comissão de Artes do Garantido e o Conselho de Artes do Caprichoso, onde os desenhistas produzem o primeiro material visual do projeto do boi, experiência que conduz a maioria a ganhar espaço nos galpões como pintores, escultores e até artista de ponta.
Experiência
Igor Viana, 22, que está no segundo ano no Caprichoso começou com Irmão Miguel, passou pela Associação de Artistas Plásticos, Escola de Artes e Liceu. “É uma experiência fantástica, eu não tinha a pegada de alegoria que é bem diferente do desenho normal, mas junto com os colegas consegui desenvolver as técnicas. É impressionante ver desde a criação até o processo final que é na arena”, conta.
Júnior Fuziel, 28, afirma que o parintinense cresce recebendo influência dos bois. “Meu pai me levava pra ver alegorias e isso me encantou. A gente nasce com esse talento”, diz. Ele começou em cursos na Casa de Acolhida onde aprendeu muitas técnicas e concluiu que queria a arte para sua vida. No Liceu conheceu desenhos de alegorias e foi um passo para chegar ao boi, onde está há quatro anos. “No boi é um conceito diferente, muitos estudos e pesquisas que fazemos aqui nos dão uma grande experiência. Quando sair estarei com outra cabeça. A gente consegue ver nossa evolução, do que era antes e o que é agora”, conclui.
Egresso do Liceu de Artes, Denner Silva, 24, descobriu o talento para o desenho no final do ensino médio e os primeiros rabiscos foram no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) do bairro Paulo Corrêa, onde participou de vários cursos.
“Eu não me interessava por desenho de boi, mas quando cheguei no Liceu conheci novas técnicas. Também nunca passou na minha cabeça ser do Conselho de Artes. Aqui já aprendi muito, do meu primeiro desenho para o que faço hoje é uma mudança muito grande. E sigo buscando a excelência”, argumentou.
Do desenho para a arena
A academia também prepara o futuro de muitos jovens, como o Hiago Repolho de Melo, 20 anos, aluno de Artes Visuais na UFAM e do Liceu de Artes.
“Sou privilegiado por estar aqui na Comissão de Artes do Garantido ao lado de grandes artistas e de outros colegas como o Anderson, o Diego e o Gilson”, afirma. E não esconde a emoção de ver tuxauas e figurinos desfilarem na arena, especialmente porque consegue ver de perto seus feitos por ser integrante da Batucada. “Esse ano a emoção vai ser maior quando for apresentada a figura típica que estou trabalhando”, lembrou.
Outro que faz história é Kedson Oliveira, 29, que conheceu a arte de desenhar quando criança, mas não imaginou que teria um contrato no boi. “A gente tem a mesma sensação do artista que executa e comanda a evolução da alegoria. Não tem explicação ver o nosso desenho materializado. Eu fico na torcida pra tudo dar certo, que ganhe nota dez e o título de campeão. É muito gratificante”, atesta. Ele aceitou o desafio em 2017, evoluiu no aprendizado e ganha confiança a cada ano.
A ‘cabeça criativa’ do Caprichoso
O incentivo, o apoio, o talento do professor Ericky Nakanome, presidente do Conselho de Artes e a maneira como conduz a cabeça criativa do boi são as referências para os desenhistas no Caprichoso.
Nakanome comanda a equipe de conselheiros que tem a palavra final sobre todos os elementos do espetáculo, incluindo a etapa de desenho, que na sua avaliação vem numa crescente. Antes os desenhistas saíam da escolinha do boi, mas com o fechamento em 2015 e 2016, meninos com nível elevado nos traços de desenhos são absorvidos do Liceu de Artes, onde o professor Erinaldo Batalha desenvolve uma técnica interessante que foge dos padrões tradicionais da arte na educação brasileira. Ele não trabalha só paisagem, natureza morta e anatomia, mas introduz figurino e alegorias de boi-bumbá.
“ Os meninos vem com a pré-leitura do que seria a realidade, pra gente é muito importante. O Liceu acaba sendo filho de Caprichoso e Garantido por conta do professor Erinaldo que era do Conselho, remanescente do trabalho feito lá atrás”, explica.
O crescimento dos desenhistas na visão de Nakanome se dá na prática, na vivência do dia no galpão, no contato com alegorias, vendo o trabalho de outros artistas que são referência na construção do projeto do boi. “É um processo coletivo, os meninos conhecem materiais, fazem pesquisas na internet, mas sem perder apoio dos livros. Eles descobrem recursos, truques, técnicas pessoais que formam essa rede estética que é cara do Caprichoso e que está alguns degraus acima”, afirma.
O processo de criação do Garantido
No boi Garantido, os desenhistas desempenham um papel fundamental no processo de criação e elaboração do projeto do boi. São eles que dão forma a imaginação dos artistas. “É a partir do desenho que começamos a ter noção real do que o projeto do boi vai apresentar, o que vai ser elaborado, o que vai ser materializado. Eles são os primeiros a praticar o projeto do boi”, conta o artista Edwan Oliveira, da Comissão de Artes do Garantido.
O artista sustenta que a partir do desenho inicia a carreira, com grande possibilidade do desenhista se tornar artista da área cenográfica, de indumentária e até da área alegórica.
Edwan explica que é um quadro que sempre se renova com novos garotos vindo do Liceu, da universidade ou que já tem a dádiva natural da maioria dos parintinenses, a arte de desenhar.
“É um etapa muito importante no processo de criação. Com dois anos os meninos já estão nos galpões como pintores ou escultores. Eu considero um trabalho importante porque é o primeiro material visual que o projeto produz”, salienta.
Parintins tem essa veia artística muito grande e a renovação não é uma dificuldade porque há uma safra de garotos bons de desenho”, afirma.
Ganhar um contrato de desenhista de boi significa ter visibilidade, mostrar seu talento. Não é à toa que muitos desenhistas que começam nos bois despontam com contratos no Rio de Janeiro e São Paulo, atuando nos carnavais e festas populares.
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