Relacionamento abusivo: uma denúncia vale uma vida

O relacionamento abusivo pode ocorrer com mulheres de todas as classes sociais. Foto: Divulgação

“Ele é o amor da minha vida”, possivelmente essa seja a frase que inicia a maioria dos relacionamentos. Porém, quando se vive em meio ao abuso, os sentimentos bons logo são trocados pelos maus. Foi o que aconteceu com Ana* há nove anos, quando foi vítima de violência doméstica pelo companheiro.

“Conheci meu esposo na época em que era coordenadora de grupo de jovens da igreja. Aparentemente um relacionamento saudável”, conta ela. A vítima tinha 21 anos e após quatro meses de namoro, Ana engravidou. Ao mesmo tempo, a mulher afirma que era muito ativa na igreja e fazia gestão de recursos humanos na Universidade Paulista (Unip).

“E foi aí que os ciúmes começaram, tudo era motivo de brigas! Ao contrário da minha família, a família dele não era bem estruturada e gostavam de festas em casa e sempre tinha muita bebida alcoólica”,  explica Ana. Porém, a situação piorou após a vítima dar à luz a filha do casal. Na época, o companheiro fazia faculdade na Nilton Lins.

Em depoimento, Ana explica que o homem sempre chegava bêbado em casa e a insultava, muitas vezes sem motivos, porém nunca falava para a família. “Até que uma noite cheguei da faculdade, busquei minha filha na casa da minha mãe e fomos para casa. À 1h ele chegou bêbado e, depois de muitas desconfianças descobri uma traição, fui tirar satisfação e começamos a nos agredir. Porém, homem é mais forte que mulher e, por isso, fiquei com vários hematomas pelo corpo. Tudo isso aconteceu na frente da minha filha que, na época, tinha um ano e oito meses”, revela a vítima.

Após a agressão, Ana afirma que esperou o dia amanhecer para procurar ajuda na casa dos familiares e amigos. “Não fiquei com vergonha, não me calei! Procurei a delegacia da mulher, passei por acompanhamento psicológico, fiz exame de corpo de delito. O pai da milha filha ainda me procurou, no mesmo dia, pedindo perdão, porém sempre fui independente e nunca aceitei violências. Então, levei o processo a frente e nos divorciamos”, conta.

Hoje, a mulher afirma que cria a filha de 10 anos sozinha e o contato com o homem é somente o necessário para a criação da criança. De acordo com a titular de Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher (DECCM), delegada Débora Mafra, situações como o de Ana acontecem diariamente e ela conta algumas características que o relacionamento abusivo possui.

Características

O casal

“O relacionamento abusivo inicia com aquele casal muito apaixonado, muito apegado, um não fica sem o outro e. geralmente, é caracterizado por excessivo ciúme. Logo, o homem começa a dar comandos para a vítima, as quais ela começa a obedecer porque acredita que é o homem da vida dela, que é o homem que vai fazer feliz, é o príncipe encantado, pela maneira como ele age muitas vezes, fazendo surpresa para ela, é um homem apaixonado”, explica Mafra.

Além disso, a delegada diz que nas relações abusivas, o casal passa logo a viver junto pois não vivem um sem o outro, e o homem começa a dar comandos a mulher e subjugá-la. “A mulher se torna uma pessoa triste, retraída e todo mundo que conhece aquela mulher sabe que ela está tendo um comportamento diferente da personalidade dela. Por sua vez, o agressor não é o bandido que nós estamos acostumados, que rouba e furta, mas é aquele pai de família, aquele vizinho legal, aquele colega de trabalho, esse é o agressor, e por mais que a gente veja aquele valentão dentro de casa, ele é covarde, pois não quer que os atos dele sejam expostos, por isso que sempre que ele bate, ele já chora porque ele não quer que ela denuncie”, diz.

Tipos de Violência

A delegada explica que dentro do relacionamento abusivo há vários tipos de violência. “A primeira é a violência moral que são as injúrias, difamações, calúnias, xingamentos, ele nem a chama mais pelo próprio nome, a chama por palavrões. Depois vem violência psicológica onde tem as ameaças, perturbações, perseguições, o tempo todo fica dando comando e dizendo que acontecerá algo grave com ela, caso não obedeça. Junto com isso já tem a violência patrimonial, pois muitas vezes ele não a deixa usar determinada roupa, quando ela usa ele rasga, quebra o celular e todos os objetos que são de agrado dela e também não permite que ela trabalhe, e se trabalhar não pode gerir o dinheiro. É uma violência que muitas mulheres sofrem e não sabem que estão sofrendo. Outra é a violência sexual, ele não aceita um ‘não’, ele acha que é desculpa, que ela está tendo outro fora de casa, ele acaba estuprando essa vítima. E, por fim, é a violência física, quando chegam os espancamentos. Começa às vezes com empurrões, beliscões, cutucões e depois vai além, ela é jogada na parede, ela é maltratada, podendo chegar até o feminicídio, que é o ápice da violência doméstica”, explica.

Dados

A delegada Débora Mafra lida com casos de relacionamento abusivo

A delegada Débora Mafra, titular de Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher (DECCM). Foto: Arquivo

Conforme a delegada, uma mulher no Brasil demora cerca de dez anos para denunciar um relacionamento abusivo e, durante esse processo, a vítima ainda separa e retorna com o agressor, em média, sete vezes. Conforme os dados do Sistema Integrado de Segurança Pública (Sisp), foram registrados 22.402 casos de violência doméstica no Amazonas em 2018. Desse total, 10.256 foram registrados na Delegacia da Mulher, localizada na avenida Mário Ypiranga, bairro Parque 10 de Novembro, zona Centro-Sul.

Já neste ano de 2019, a delegada afirmou que desde 1º de janeiro, a DECCM registrou 3.123 casos de violência doméstica. “A parte boa desses números é em relação a mulher estar denunciando e tirando de dentro de casa esses agressores. O grande problema da violência doméstica é a vergonha da mulher em expor a situação por achar que só ela passa por isso. Porém, infelizmente, essa é a realidade de muitas”, diz Mafra.

Síndrome do Estocolmo

Foto: Divulgação

Durante o ciclo de relacionamento abusivo, uma síndrome que a mulher apresenta é a síndrome do Estocolmo. “No sentido psicológico, essa síndrome se refere às vítimas que estão inseridas em um relacionamento abusivo onde a mulher não percebe que a relação é prejudicial a ela e passar a ter idolatria, adoração e algum tipo de afetividade pelo agressor”, esclarece a psicóloga Isadora Ferreira.

A profissional ainda diz que essa síndrome não acontece só em caso de violência doméstica, mas pode acontecer no ambiente de trabalho, em qualquer situação onde possa existir hierarquia e alguém que esteja submisso. “O curioso é que geralmente quem está de fora desse tipo de relação percebe os prejuízos que aquela pessoa submissa passa e, geralmente, a vítima não consegue perceber, nem se libertar, pois o agressor faz com que a pessoa atribua a si mesma um sentimento de desvalorização ou de dependência”, explica Ferreira.

Para essa síndrome, a psicóloga diz que o tratamento para esses casos é estritamente psicológico, como uma psicoterapia para que a vítima comece a pesar os custos e os benefícios que a relação apresenta, para conseguir se conscientizar que está tendo mais prejuízos e tomar uma atitude, trabalhando o senso de valor e eficácia e estimulando a independência.

Rede de Atendimento

As mulheres vítimas de violência doméstica contam com uma rede de atendimento e proteção administradas pelo Governo do Amazonas, por meio da Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc). Os serviços oferecidos são atendimento social e psicológico, orientação jurídica, rodas de conversas sobre violência doméstica e familiar, além de abordagens informativas sobre a rede de serviços.

Os atendimentos são iniciados pelo Serviço de Apoio Emergencial a Mulher (Sapem), que oferece orientação social, acompanhamento psicológico, jurídico e condução da vítima para exames no Instituto Médico Legal (IML), além da busca de pertences e acolhimento provisório. Já o Centro Estadual de Referência e Apoio à Mulher (Cream) oferece serviços de atendimento social, psicológico, com encaminhamento para benefícios sociais.

“Em casos de extrema urgência, onde ocorrem ameaças, a pessoa é encaminhada para a Casa Abrigo, que é um local sigiloso, utilizado em casos de risco de morte. Além disso, existe um aplicativo de celular que é o Alerta Mulher, em que as vítimas em alto grau de risco de morte são inseridas nesse programa para que, quando a pessoa acionar o botão, seja imediatamente atendida pela polícia”, informa a secretária da Sejusc, Caroline Braz.

Projetos de Lei

A deputada federal Alessandra Campelo (MDB) preside a Comissão da Mulher, das Famílias e do Idoso da Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam). Foto: Divulgação

A presidente da Comissão da Mulher, das Famílias e do Idoso da Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam), deputada federal Alessandra Campelo (MDB) conta que tem desenvolvido estudos, debates, propostas, audiências públicas e eventos com foco na defesa das mulheres. “Fiscalizo o cumprimento das leis relativas à causa da mulher, recebendo e promovendo representações contra atos abusivos ou lesivos a direitos visando à apuração das responsabilidades no âmbito da Justiça”, declara.

Abordando a temática mulher, a produção legislativa da deputada conta com quatro leis aprovadas, duas resoluções legislativas e seis projetos de lei em tramitação. “Defendo a criação de projetos e programas de inserção da mulher no mercado e trabalho e destino recursos no Orçamento para melhorar a infraestrutura e de pessoal das Delegacias da Mulher e ampliar a rede de proteção e atendimento às maiores cidades do interior. As mulheres do Amazonas têm vez e voz na Assembleia Legislativa”, afirma Campelo.

A deputada ainda disse que acompanha de perto sua assessoria jurídica sobre os casos de violência contra as mulheres nas delegacias e cobra punição rigorosa aos agressores e feminicidas no Poder Judiciário.

Câmara Federal

Foi aprovado na última quinta-feira (11), na Câmara dos Deputados Federais, proposta que garante às vítimas de violência doméstica o direito a indenização por danos morais em um processo mais rápido, sem a necessidade de uma nova fase de provas após o pedido da vítima. De autoria do deputado Júnior Bozella (PSL-SP), pelo texto o juiz poderá determinar como medida protetiva que o agressor deposite em juízo como caução por perdas e danos morais e materiais decorrentes da prática de violência doméstica. A medida segue para o Senado.

Denúncia

A delegada Débora Mafra enfatiza a importância da denúncia. “A gente sempre pede para que a vítima tenha coragem e denuncie, não somente ela, mas os vizinhos e familiares também, pois a não denúncia vale uma vida e quase todas as mulheres vítimas de feminicídios são aquelas que nunca denunciaram”, diz.

Para as mulheres que estão passando por isso, Ana deixa um recado. “Não tenham medo de enfrentar essa situação, não sintam vergonha de pedir ajuda. Eu poderia ter ficado calada, ter escondido e inventado desculpas, mas nunca aceitei. Violência não escolhe cor, classe social, nem mesmo estrutura familiar”, finaliza.

 

*Nome fictício para preservar a identidade da vítima

Reportagem: Fabrinne Guimarães 

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