Circo e Solidariedade

Tempo houve em que era possível ver animais nos circos. Tigres, elefantes, leões e cavalos. A fauna era variada e as exibições buscavam revelar o grau mais elevado possível de domesticação dos bichos. Considerações de ordem humanitária acabaram com isso. Seria cruel a forma de tratamento e, procedente ou não, o argumento acabou por se impor, privando os circos e as plateia dessa forma de entretenimento.

A história que vou relatar cuida de fatos ocorridos antes da proibição. Foi quando Manaus ainda tinha bondes e pouquíssimos carros. Quando os igarapés tinham águas límpidas e nem sonhavam em ser soterrados por essa insanidade chamada Prosamim. Nesse ambiente, chega ao cais do porto um navio transportando toda a estrutura e pessoal de um circo. Era dos grandes, daqueles que têm pelo menos três picadeiros, com as lonas respectivas, bem coloridas como é dever de qualquer circo que se preze. A chegada já foi apoteótica. Para a pequena província, uma festa considerável. O desfile se estendeu desde o desembarque até o local onde foi montada toda a estrutura. Fanfarras se espalharam pelas ruas e a garotada, em delírio, acompanhava o cortejo, deslumbrada com as gaiatices dos palhaços e com a visão dos gigantescos animais que, mais ou menos calmos, passavam altivos nas suas jaulas.

Vivia aqui, então, um rapazola de nome Antônio. Era pobre como a maioria de seus conterrâneos e levava a desvantagem de ser paraplégico, consequência de uma paralisia que o acometeu na primeira infância. “Pobre, com a graça de Deus, mas honrado”, como faria questão de proclamar essa grande figura da literatura amazonense que é o professor Carlos Gomes. Além disso, Antônio era doido por circo. Nunca vira um em sua vida modorrenta, mas sonhava e proclamava que não havia de morrer sem assistir a um espetáculo.

A chegada do circo a Manaus o deixou em tremenda ansiedade. Afinal de contas, era oportunidade única, que talvez nunca se repetisse e ele tanto fez que conseguiu dos pais autorização para ir a um espetáculo. Não tinha ele cadeira de rodas e, ainda que tivesse, não se conheciam normas que obrigassem o poder público a adotar medidas que facilitassem a movimentação de cadeirantes. Transportado pelos parentes, Antônio foi acomodado da melhor maneira possível num dos lugares da plateia para assistir à sessão das dezessete horas.

Soam os clarins, rufam os tambores e o espetáculo começa. Antônio era a personificação do êxtase. Olhava embevecido para as alturas, onde os trapezistas se desdobravam em acrobacias quase desafiadoras das leis da física. Ria a bandeiras despregadas com as marmotas dos palhaços, que se embolavam pelo chão, com brincadeiras de humor pelo menos duvidoso. Mas tudo era maravilhoso para Antônio. Parecia-lhe incrível que aquele homem pudesse engolir fogo e, nem nos seus mais intensos momentos de sonho, imaginou possível a existência de uma mulher ostentando longa e espessa barba. Muito menos acreditava que três motocicletas não se chocassem, rodando ao mesmo tempo e em alta velocidade no chamado “globo da morte”.

Em determinado momento, as luzes se apagam e o holofote concentra seu foco no apresentador devidamente paramentado. Microfone na mão, ele anuncia com a solenidade que o momento estava a exigir: “Respeitável público, a direção deste circo tem a honra e o prazer de apresentar ao povo de Manaus um espetáculo inédito. Nunca foi ele visto em nenhuma outra parte. É com imenso orgulho que apresento à distinta plateia Thor, o domador de feras. Ele vai estar na jaula com dois leões africanos e um tigre asiático. A título de informação, esclareço que os animais ainda não foram alimentados no dia de hoje”.

Silêncio geral. A luz se desloca para mostrar um homenzarrão, dentro de uma jaula e munido de um chicote que ele fazia estalar com perícia invejável. Por uma portinhola adentram os leões e o tigre prometidos. Thor esbraveja, dando a voz de comando para que os animais cumprissem seu papel. Um sobe numa cadeira, enquanto os dois outros se ocupam com uma bola por eles rebatidas.

Acredita-se até hoje que foi descuido do funcionário encarregado. O certo é que, pela mesma portinhola por onde entrou, um dos leões conseguiu escapar da jaula. Pânico geral. O alvoroto se instalou imediatamente e a correria começou, os pais querendo proteger os filhos e buscando salvar a própria pele, já que a fera, livre como nasceu, esturrava de modo assustador. Nessa confusão, alguns dos espectadores, enquanto fugiam, gritavam a plenos pulmões, no que, suponho, era manifestação de solidariedade: “Olha o aleijado, olha o aleijado”.

Inerte e apavorado, na sua cruel imobilidade, Antônio não pode mais que responder: “Porra, deixa o leão escolher”. O que, tudo bem visto, impõe a conclusão filosófica de que a solidariedade não depende somente de quem a presta, por isso que está na dependência do estado de espírito de quem a recebe.

 

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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