
Raimundinho Dutra (foto) nasceu em 1930 e cresceu com a toada, sendo um dos responsáveis por transformar os originais versos de improviso em música
A toada de boi bumbá acaba de perder um dos seus pilares. Raimundo Nonato de Jesus Dutra, o Raimundinho Dutra, faleceu, aos 94 anos, deixando legado fundamental, ao Boi Bumbá em geral e ao Caprichoso em particular. Fez toadas que atravessam décadas, imortais, como “Balanceou, balanceou” e “Atravessei baía” (“Areia branca”), sendo um dos responsáveis por firmar o gênero, inexistente, bebendo com genialidade na torrente emanada principalmente do Maranhão. Para não perder o trocadilho, se Bob Dylan era “um completo desconhecido”, ao chegar a New York, foi o boi bumbá que, desconhecido, desafiou o talento de Dutra.
O filme “Um completo desconhecido” (A Complete Unknown), à guisa de biografia do Prêmio Nobel de Literatura (2016) Bob Dylan, traz muitas lições. Mostra um Robert Allen Zimmerman (Dylan) chegando a New York, no começo dos anos 1960, e já mandando uma Blowin’ In the Wind (1963), consagrando-se na folk music e na música mundial. É imperdível. Timothée Chalamet, em cinco anos de treinamento, aprendeu (“tirou”, como se dizia na toada) as 40 músicas do artista que interpretou no filme e estão disponíveis, nas plataformas de stream, com ele cantando – “ninguém o vê no filme, só Dylan”, como disse um crítico.
Parintinense, claro, não ia comparar um gênio local com pouca coisa. Ainda mais depois que a toada, vertida dessa fonte, ganhou o mundo com “Vermelho” e “Tic-Tic-Tac”. Raimundinho guindou o que eram versos, geralmente de improvisos, para o status de música, em toda a beleza da complexidade que isso significa.
Filho de Sila Marçal
Raimundinho Dutra vem de uma família muito cara a Parintins. A mãe, dona Sila Marçal, falecida também aos 94 anos, “botava” pastorinha, todos os anos. Era um esforço solitário, mal compreendido, fruto de trabalho que atravessava meses. Ela tecia presépios belíssimos, palcos dos ensaios no barricão com piso de de terra batida, desde antes do Natal, para mandar as pastoras às ruas no Dia dos Santos Reis, o 6 de janeiro, que Parintins hoje cultua em sua homenagem.
(parênteses para falar na primeira pessoa):
Meu tio, Luiz Gonzaga, meu pai, Zé Caiá, e meus irmãos mais velhos falavam tanto de Dona Sila Marçal e Raimundinho Dutra que, ainda na rádio Alvorada, uma de minhas primeiras matérias foi sobre eles. Fui à casa simples, na avenida João Meireles, em Parintins, encontrar Dutra – dona Sila já havia falecido. Me recebeu com filhos e o sobrinho, João Haroldo Dutra, o Neguinho, filho de Conceição de Maria José Dutra, irmã de Raimundinho. Neguinho foi do grupo Sangue Azul e hoje integra o Toada de Roda.
Conversamos, choramos com nossas memórias e eu pedi que cantasse algo. Ele me disse que estava sem o violão, emprestado, mas, em cima de velhos baús, com colheres e a palma da mão, a meninada improvisou o ritmo para ele cantar. Um show inesquecível.
(fecha parênteses).
Dutra não se fez de rogado, quando a meninada explodiu na toada e ocupou espaços. Com “Atravessei baía”, “Balanceou”, “Pirilampos”, “Marujada de guerra” e “Desfilando na cidade”, ele havia ditado a regra de como fazer. Depois, com o ritmo acelerado, todos descobriram que o trabalho antológico dele permanecia de pé e se adaptava a qualquer pirueta da “nova” toada. Basta ver as interpretações de David Assayag no CD “100 anos do Caprichoso”.
Essa “base” tem outros nomes. Aí estão inscritos Lindolfo Monteverde, fundador do Garantido e um grande poeta, mestre Ambrósio, rival de Dutra, e Zazá. Mas Raimundinho sobreviveu a todos eles, acompanhou e se adaptou às inovações, lado a lado com expoentes atuais, como Chico da Silva, Emerson Maia, José Carlos Portilho, Fred Góes, Inaldo Medeiros, Demétrios Haidos, César Moraes, Adriano Aguiar e tantos outros.
O trabalho de Dutra é uma linha do tempo do ritmo dos bois bumbás. “Aquarela do touro negro” (“Eu vi, meu boi pastando/ no campo verde serenado/ e a vaqueirada brincando/ tangendo gado/ eu vi/ não havia vaqueiro a osso/ só em cavalo selado”) é típica do fim dos anos 1980. “Sururu Bababá” é a cara dos anos 1990.
Há homenagens urgentes a serem feitas. A primeira, mais que todas, é a gravação do acervo de toadas. Rey Azevedo, ex-amo do Caprichoso, conhece quase tudo. Neguinho, o sobrinho, outra parte. Como ele cantou, quando começaram a aparecer balanceou pra tudo quanto é lado, “primeiro quem balanceou fui eu/ quem cancionou a toada fui eu/ já desfilei na cidade/ você não havia nascido…”.
Ao lado de Rey, ano passado, aos 93 anos, ele fez um pequeno recorte do acervo, no programa “Toadas”, do BNC de Neuton Corrêa. Espetacular.
Raimundinho Dutra, pai de 14 filhos e netos incontáveis (“todo dia nasce um”, como dizia, sempre bem-humorado) está sendo velado na rua Rogério Magalhães, 77, Núcleo 14, Cidade Nova 2. O sepultamento ocorrerá às 16h desta terça (06/04/25), no cemitério São João Batista. Que descanse em paz, gênio. Se a gente te esquecer, com essa memória falha do ser humano, a toada jamais o esquecerá.
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