O centenário de um mâitre, incansável empreendedor

Por Daniel Sales

“Marupiara, palavra que vem da língua dos povos munduruku, nome de um ritual que transforma menino em guerreiro, após passar por sete desafios.”
1. diz-se de ou pessoa que tem sorte na caça e na pesca.
2. diz-se de ou pessoa que se sente feliz, que foi favorecida pela sorte.

Cosme Santana Costa

Nasceu numa quinta-feira, 23 de setembro de 1923, na Vila de Bom Jesus, município de Maracanã, Pará, a cerca de 165 km de Belém, na Zona marítima do Estado nortista, ao lado de Marapanim e Salinópolis.

Era filho de Valeriana e Casemiro.

Cedo aprendeu o ofício do pai: carpinteiro.

Criança, também ajudava o genitor nas horas vagas. Nas outras catava caranguejos, em meio ao manguezal, para ajudar no sustento da família.

Menino inteligente, detentor de uma bela caligrafia, estava sempre entre os melhores alunos na escola da Vila. Aos 12 anos, já construía casas e fazia vários serviços também em marcenaria. As hábeis mãos foram importantes na gastronomia, pois seria um excelente cozinheiro.

Na maioridade foi à capital do Estado para se alistar no Exército.

Na fila de espera do alistamento conheceu Teodorico (soldado Soares), do qual foi amigo até o fim da sua vida.

Certa vez – em 2005 – peguei um táxi. Conversando com o motorista, longevo, descobri que seu nome era Teodorico. Pois bem, como ele disse que tinha 82 anos de idade arrisquei: ” O senhor conheceu um sujeito chamado Cosme?” Ele respondeu rapidamente: “Foi o meu melhor amigo!”.

1944

Em 1944 chegaram a Manaus para o 27⁰ BC.

Ambos foram alistados e destacados para servir na fronteira da “Cabeça do Cachorro”, no Amazonas, especificamente no distrito de Cucuí, na Tríplice Fronteira Brasil-Colômbia-Venezuela.

O Brasil, nessa época, tinha como presidente o gaúcho Getúlio Vargas (que chegara ao poder em 1930) e havia declarado guerra ao Eixo (por influência dos Estados Unidos) e apoio aos Aliados.

O 1⁰ Navio de guerra norte-americano, que saiu do Brasil levando mais de 5 mil soldados brasileiros à Europa, foi em meados de 1944. De dois em dois meses foram saindo navios para o teatro de guerra, na Itália, com os milhares de combatentes brasileiros.

O último navio ainda lá chegou em abril de 1945. Mais contingentes sairiam se a guerra continuasse (na Europa terminou em 8 de maio de 1945, com a rendição alemã). Todos os lotados na região de Fronteira do Amazonas não mais viajariam à Europa e continuariam no Brasil.

Exército

Cosme e Soares foram mandados para o 26⁰ BC e depois para os 2⁰ e 3⁰ batalhões de fronteiras, comando dos Elementos de Fronteira, em 1/11/1944, a fim de aguardar um possível chamado para ir à guerra na Europa. Lá houve o maciço exercício para a guerra.

Nesse meio-tempo, os Elementos de Fronteira ficariam de sobreaviso. Aguardavam a vez de viajar ou não.

Com o fim da Guerra, muitos continuaram em seus postos, a fim de servir à Pátria.

Cosme cultivou muitas amizades, com vários indígenas da região. Foi lá que recebeu um apelido indígena: Marupiara. Quando de lá saiu (27/10/1950) levou a Manaus um punhado de presentes dados pelos novos amigos amazonenses: arcos, flechas, cuias, cestos, flautas, cocares, colares, dentre outros regalos (até a década de 1980, alguns destes estavam preservados na casa dele, no bairro da Praça 14).

Manaus

Em Manaus, agora sua nova cidade, foi procurar um local para residir. Encontrou para isso uma vila localizada ali na rua Duque de Caxias, próximo à Ramos Ferreira. Foi quando soube que havia um templo da Assembléia de Deus nas proximidades. Começou a frequentá-lo. Como também possuía o dom de cantar, logo estava no Coro da Igreja. Se utilizou bastante da “Harpa Cristã”, com hinos da Instituição. Como havia dado baixa do Exército, viu-se a procurar outro trabalho. Não encontrou vaga para o seu antigo labor, a carpintaria. Então surgiu uma oportunidade de trabalhar como garçom no Hotel Amazonas (que estava sendo inaugurado), em 1951.

Para quem não sabe, esse hotel àquela época era o mais afamado e moderno de Manaus.

Inaugurado em 7 de abril de 1951, possuía 49 apartamentos, distribuídos em quatro andares. Os elementos decorativos, como jardins e gravuras internas, foram assinados pelo renomado paisagista Burle Marx. O hotel era localizado na avenida Floriano Peixoto. O prédio continua lá.

Família

Foi nessa época que conheceu sua futura esposa, a Débora. Ela também participava dos eventos da Igreja, inclusive no coral, como mezzo soprano, e também tocando piano e bandolim. Na verdade, desde criança era partícipe da vida social da Assembléia de Deus.

O ano ainda era 1951.

Os novos amigos iniciaram o namoro, não sem antes o consentimento dos pais de Débora, Júlia e João, que foram um dos primeiros nomes da Igreja, no 1⁰ Templo, na rua Duque de Caxias.

Àquela época somente com a autorização dos pais é que a jovem poderia namorar. E vejam que Débora já trabalhava há anos no comércio de Manaus e era uma jovem independente, aos 21 anos de idade!

O namoro prosseguiu e em 1952 houve o casamento.

Como carpinteiro de “mão cheia”, ele construiu a casa que seria a futura residência da família. Estrutura em madeira de lei, esteios de grosso calibre, assoalho de tábuas resistentes, macaúba, pernamancas e caibros de sucupira, paredes com tábuas de angelim, com ripas e telhado com telha francesa de cerâmica. Na fachada, a porta principal e uma grande janela retangular. Pé direito padrão. À frente, uma pequena escadaria de tijolos dobrados e uma maravilhosa mangueira de frutas super doces e uma castanholeira – uma maravilha, uma verdadeira obra-prima, que só foi derrubada, 30 anos depois, pelos ditames normativos do progresso.

Foi nessa época que ele foi a Maracanã (distante 165 km de Belém, no mar do Estado) visitar a mãe e os familiares e, voltando à Manaus, trouxe uma sobrinha (Benigna, então com 16 anos), filha da irmã (Leonarda), para de vez residir e constituir família no Amazonas. Benigna, a “Benzinha”, tornou-se o braço direito de toda a família, por três gerações, como enfermeira da mais alta competência.

Ali, em 1952, foi iniciada uma união marcante, que gerou cinco filhos (Sarah, Laudiceia, Esther, Samuel e Daniel).

As reuniões dominicais eram soberbas. Cosme era um excelente cozinheiro e de natureza hospitalareira. Sabia bem receber as visitas e cultivava as amizades diversas. Não era difícil ele voltar das compras com um imenso tambaqui para assar, fritar ou cozinhar, com todo o requinte. As caldeiradas eram frequentes e a habilidade com um sem número de pratos, o fizeram um mestre neste setor.

Cosme era partidário também das inúmeras pescarias, aonde demonstrava enorme habilidade nos vários tipos de pesca, da linha com anzol à tarrafa.

No Hotel Amazonas.

Pois bem, logo logo, no Hotel, Cosme conseguiu chegar ao cargo de “maître”; que, para quem não sabe, é uma palavra de origem francesa, que significa mestre.

Neste caso, um profissional cujas ordens devem ser cumpridas para que o atendimento aos clientes seja o melhor possível. Além de ser o anfitrião do estabelecimento, poderia ser também uma espécie de gerente – aquele profissional que direciona as demandas para as suas resoluções imediatas e com alta performance.
Rapidamente, adquiriu intenso conhecimento. Amealhou recursos financeiros e adquiriu uma embarcação para navegar pelos rios da Amazônia, na nova função: comerciante.

Comércio

Em 1958 construiu um pequeno quiosque, na Praça 14, para vendas diversas. Nessa época trabalhava mais pelos rios Madeira, Solimões e afluentes.

As coisas iam bem pra ele, comprando produtos no interior e revendendo-os na capital (e vice-versa, uma espécie de regatão). Conseguiu contratar vários trabalhadores para auxiliá-los.

Mas, alguns anos à posteriori, vindo de uma das suas inúmeras viagens, em direção à Manaus – próximo à Manacapuru – deixou o timão (direção do barco) nas mãos de um solícito funcionário (“Seu Cosme, deixe eu levar um pouco a embarcação?”). Como esse prático já havia trabalhado como timoneiro uma ou outra vez, não viu problemas em lhe passar o comando. Faltava pouco para chegarem. Passados alguns minutos a embarcação foi levada a bater sua quilha nas pedras e, com isso, o barco foi à pique, perdendo-se no fundo do rio Solimões. Graças à Deus a tripulação conseguiu se salvar, nadando até as margens do rio. Nesse desespero da madrugada, com alta correnteza do rio, Cosme, excelente nadador, ainda conseguiu salvar um dos seus funcionários, que se afogava em meio ao imponente rio. Os prejuízos foram enormes. Ainda houve o resgate do barco, mas, o valor foi irrisório para a revenda. Todas as mercadorias foram perdidas.

Adega Portuguesa

Passados alguns meses, o incansável mâitre agora era gerente do mais importante restaurante/bar da cidade de Manaus, a famosa Adega Portuguesa. Para lá também levou a esposa para trabalhar. A Adega
recebia muitos clientes da alta sociedade baré e também diversos turistas. Recebia também ilustres personalidades locais e nacionais. Havia apresentação de grupos musicais. Possuía uma enorme variedade de bebidas e pratos para os mais variados gostos. Influentes políticos eram contumazes frequentadores do local (de deputados à governadores). Cosme, ali, aumentou o seu leque de amizades e só não enveredou na política baré porque realmente não quis: “meu negócio é o Comércio e o bem servir”, assim falava! Um dos que o convidava chegou a ser ministro no governo federal.

Mercearia e a volta aos rios

Abriu uma mercearia/sorveteria no Centro de Manaus. Era bem afreguesada, mas, preferiu partir pra outros desafios.

A vontade de voltar aos rios fez com que ele saísse da sorveteria e adquirisse uma nova embarcação. E isso foi feito!

De volta ao barulho do motor e ao burburinho à chegada e à saída dos portos ribeirinhos renasceu em Cosme a alegria de viver. Mas, ao mesmo tempo que se satisfazia no trabalho, tinha em seu corpo físico, a massacrante volta de um problema antigo – no final da década de 1940 (quando ainda estava no Exército) foi à capital federal, Rio de Janeiro – se tratar – o reumatismo, que o maltratava com intensas dores. Cosme, infelizmente, teve que abandonar a vida nos rios e ficar em casa, e também se utilizando de medicamentos prescritos pelos médicos. Desativou e alugou o antigo quiosque de madeira para ser uma borracharia (Borracharia Amazonas). Isso já era 1970. Com uma sensível melhora de seu problema físico resolveu começar tudo de novo.

Abriu um novo comércio em frente à sua casa. Ali era vendido do pão com manteiga à sopa, do peixe frito ao melhor bolo, da bebida ao sanduíche, da salada de fruta à batida de maracujá e refrigerantes diversos. Com o passar dos anos, esse comércio tornou-se um dos maiores no ramo e foi o “esteio” da família. So em 1994 foi desativado.

Fim da linha?

Na noite de 18 de abril de 1973 Cosme sucumbia e partia para outra dimensão, vítima de um infarto.
Não se ouviria mais os cânticos bem cantados pelo coralista. Os amigos sentiriam anos à fio a sua falta. A cozinha da família entristeceu. Um bom bate-papo agora viraria recordações.

Seu legado aos filhos foi a perseverança e o trabalho incansável, além da dedicação extremada à família.
O homem amigo de todos – do mais simples caboclo ribeirinho, e o indígena da tribo longínqua ao jornalista ou político mais importante – não se negava a ajudar ao próximo, e sua mesa era farta. Um caboclo tenaz que lutou até aonde pôde. Um Marupiara de alta estirpe. Realmente um Mâitre, na acepção do termo.

Daniel Sales

Daniel Sales

* Daniel Sales é pesquisador cultural.

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