Dados da Covid-19 no AM reforçam teoria de que imunidade de rebanho pode vir antes do previsto

Na foto, paciente recebe alta do hospital de campanha montado pela Prefeitura de Manaus e a Samel, no ápice da pandemia na capital. Foto: Ingrid Anne/HCM

A evolução da Covid-19 no Amazonas tem chamado a atenção de cientistas. É que, três meses após o pico da pandemia no estado, os números de óbitos continuam baixos e estáveis. Para especialistas, os dados do Amazonas reforçam que a teoria de que a imunidade coletiva, ou imunidade de rebanho, ao novo cononavírus pode ocorrer antes do previsto por estimativas feitas no início da pandemia. A imunidade coletiva é atingida quando certa quantidade da população é exposta ao vírus. Mas, os pesquisadores, não indicam a imunidade coletiva como estratégia de política pública, pois o sistema de saúde não seria capaz de atender um elevado número de contaminados ao mesmo tempo.

As informações foram divulgadas em reportagem da Agência Fapesp, nesta semana. Conforme a publicação, os dados da evolução da infecção no Amazonas dão uma ideia do que ocorreria em parte do mundo, caso os governos deixassem a pandemia seguir seu curso natural, ou seja, reduzissem as medidas que evitam a proliferação do vírus.

O colapso e a queda dos números

Manaus, capital do Amazonas, sentiu os efeitos severos da pandemia sobre o sistema de saúde ainda em abril, um mês a confirmação do primeiro infectado.

Os casos avançaram rapidamente e os números de mortos tiveram picos entre abril e maio. O sistema de saúde entrou em colapso.

As vagas nas unidades de saúde foram ocupadas rapidamente. O Estado precisou criar tendas nas áreas externas de hospitais e chegou a contratar caminhões frigoríficos para armazenar corpos.

Já a Prefeitura de Manaus abriu covas coletivas, e firmou parceria com a iniciativa privada para a montagem de um hospital de campanha.

O Governo do Amazonas restringiu a movimentação de pessoas entre as cidades, evitando o colapso nos 61 municípios.

No fim de maio, os números começaram a cair na capital. Dados diários da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) mostram que o número de casos graves reduziram, o que resultou na redução do óbitos.

Com os números em queda, a própria FVS-AM deu parecer favorável à reabertura do comércio em Manaus e para a volta de parte das aulas presenciais na capital. Foram criados protocolos de segurança para o retorno dessas atividades, como o uso obrigatório de máscaras e a orientação de distanciamento social.

A reportagem da Fapesp reforça que a “a tendência de queda vem se mantendo constante no Estado, mesmo com comércio e escolas em funcionamento desde junho, e a despeito de estudos indicarem que nem 30% da população desenvolveu imunidade contra o novo coronavírus”.

Clique aqui e veja a evolução dos dados da Covid-19 no Amazonas até a data de ontem, 8 de setembro. 

Imunidade coletiva

Na terça-feira (4/8), especialistas participaram de um webinar promovido pela Agência Fapesp e pelo Canal Butantan. Os pesquisadores avaliaram que os dados do Amazonas reforçam uma hipótese que tenha ganhado espaço na comunidade científica: o limiar da imunidade coletiva – também chamada de imunidade de rebanho – ao SARS-CoV-2 pode ser alcançado quando algo em torno de 20% da população é infectada.

Na ótica dos pesquisadores, o caso do Amazonas indica que essa imunidade seria atingida antes do esperado, já que as estimativas feitas no início da pandemia estimavam que a imunidade de rebanho poderia ser atingida quando o número de infectados de uma população estivesse entre 50% e 70%.

De acordo com a Fapesp, o grupo coordenado pela biomatemática portuguesa Gabriela Gomes (atualmente na University of Strathclyde, na Escócia), que inclui pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), foi um dos primeiros a apontar nessa direção, com base em projeções feitas por um modelo matemático que leva em conta o fato de que os indivíduos de uma população têm diferentes graus de suscetibilidade e de exposição ao vírus.

“Chegamos à conclusão de que essa heterogeneidade pode alterar muito os resultados e em um sentido positivo. A epidemia deve ser menor do que o previsto pelos modelos homogêneos [que não consideram os diferentes níveis de suscetibilidade e exposição entre os indivíduos] e o limiar da imunidade coletiva também deverá ser menor do que aquele que os modelos clássicos indicam”, disse Gomes, durante o seminário on-line.

A pesquisadora ponderou que atingir o limiar de imunidade rebanho não significa o fim da epidemia. Como as cadeias de transmissão já foram instaladas, o número de casos acumulados deve continuar crescendo, podendo chegar ao dobro do que foi registrado no pico da curva epidêmica. É o que tem sido observado no Amazonas. Em alguns dias da semana, a FVS-AM registra números elevados de casos positivos. No entanto, o número de mortes segue estável.

“Com uma mitigação cuidadosa podemos fazer com que a diferença entre o número de infecções existentes quando o limiar de imunidade coletiva foi atingido e o tamanho final da epidemia seja menor. Para isso é preciso controlar os surtos que vão surgindo de forma localizada e adotar medidas como o rastreamento de contato”, explicou Gabriela Gomes.

No webinar, o epidemiologista Bernardo Horta, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), apresentou dados do maior estudo de soroprevalência feito no país, o Epicovid. O estudo mediu a proporção de pessoas com anticorpos contra o SARS-CoV-2). As informações colhidas corroboram com as projeções feitas com o ‘modelo heterogêneo’, desenvolvido pela pesquisadora Gabriela Gomes.

Conforme a Fapesp, na primeira onda de testes da pesquisa da UFPel, realizada entre 14 e 21 de maio, apenas algumas cidades da região Norte e Fortaleza, no Nordeste, apresentaram mais de 5% da população infectada. Na terceira e última onda, entre 21 e 24 de junho, quase todo o Norte e o Nordeste – além da cidade do Rio de Janeiro – já registravam mais de 5% de soroprevalência.

Atualmente, esses locais apresentam taxa de contágio (Rt) do novo coronavírus abaixo de 1, ou seja, cada infectado está transmitindo o vírus para menos de uma pessoa em média. A conclusão é que o número de casos novos segue tendência de queda nessas localidades.

Mesmo em cidades como Breves, no Pará, onde 24,8% das pessoas testadas na primeira onda do estudo apresentaram anticorpos contra o SARS-CoV-2, em nenhum momento, a taxa de soroprevalência ultrapassou 30%. Horta destacou que, em alguns locais da região Norte, a proporção de pessoas com anticorpos contra o vírus diminuiu entre a primeira e a terceira etapa de testes. Mas, ainda não se sabe o por quê desses resultados.

Na avaliação do infectologista Júlio Croda, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), somente a imunidade coletiva poderia explicar como os Estados do Norte e Nordeste e a cidade do Rio de Janeiro têm apresentado taxa de contágio inferior a 1, mesmo sem distanciamento social efetivo.

No entanto, o pesquisador ressaltou que a imunidade de rebanho não deve ser adotada como política pública, já que nenhum sistema de saúde seria capaz de ofertar a quantidade de leitos de terapia intensiva necessários para enfrentar a primeira onda da doença sem medidas de mitigação.

“Manaus teve o maior excesso de óbitos entre todas as cidades do Brasil; chegou a 500%. Foram registradas [em 2020] cinco vezes mais mortes que nos anos anteriores – 90% delas por causas respiratórias. O caso do Amazonas nos permite entender como seria a história natural da doença. Mas não estamos propondo isso como estratégia. É a constatação de uma tragédia. Temos de aprender com os dados reais”, esclareceu Croda.

Cenários futuros

Ao admitir que as projeções do ‘modelo heterogêneo’ de Gomes se aproximam do que deve, de fato, ocorrer, Croda estima que a capital paulista está perto de atingir o limiar de imunidade de rebanho. O caso da cidade de São Paulo é diferentemente do interior do Estado, onde a curva de novos casos ainda é ascendente.

“Estudos indicam que a soroprevalência na cidade de São Paulo está em torno de 11%, chegando a 16% em alguns bairros mais pobres. Manaus, no pior momento da epidemia, chegou a 14,8% de soroprevalência. São Paulo fez um bom trabalho, principalmente na Região Metropolitana. O excesso de óbitos chegou a 28% e não a 500%, como Manaus”, comparou o infectologista.

De acordo com o epidemiologista Marcos Amaku, da USP, mesmo que seja possível alcançar a imunidade coletiva com 20% da população infectada, no Estado de São Paulo, esse número corresponderia a 8 milhões de pessoas. Atualmente, há menos de 600 mil casos confirmados e mesmo considerando que o número real seja sete ou oito vezes maior, SP ainda estaria na metade do caminho.

“A maioria dos municípios paulistas não chegou a 10% de soroprevalência. No ritmo atual devemos levar um bom tempo para chegar a 20%”, disse Dimas Tadeu Covas, diretor do Instituto Butantan. Ele que participou do seminário como debatedor.

Segundo Croda, dados epidemiológicos sugerem que, com medidas para mitigar a disseminação da doença, como o uso de máscaras e o distanciamento social, talvez não seja necessário que todos os locais atinjam o mesmo patamar de soroprevalência para que o efeito da imunidade de rebanho possa ser observado.

“Estou otimista e acredito que já devemos ter passado pelo momento pior da pandemia, com a exceção dos Estados do Sul e parte do Centro-Oeste. Afirmo isso com base no modelo heterogêneo e com base na tragédia dos quase 100 mil óbitos já registrados no país. Não devemos normalizar quase mil mortes diárias por 60 dias. Mas, como o pior já está passando em São Paulo, que é um Estado com 44 milhões de habitantes, isso representa muito para o Brasil. Passado esse platô de óbitos – que ainda não sabemos quanto vai durar porque tem a contribuição dessas outras regiões [Sul e Centro-Oeste] – acho que vem a queda”, afirmo Croda.

A íntegra do webinar está disponível no Canal Butantan no YouTube.

 

Fonte: Karina Toledo, da Agência Fapesp

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