E a Constituição?

Na sessão de quarta-feira, a introdução do voto do ministro Celso de Melo, decano do Supremo Tribunal Federal, foi uma lição de civismo, através de um ralho muito bem dado no general boquirroto que andou alardeando inconveniências sobre a situação política do país. Falar de “intervenção militar” é eufemismo para golpe de Estado e não foi outra coisa que fez o general, num ostensivo desrespeito à Constituição e aos princípios que regem o Estado Democrático e de Direito. As Forças Armadas são instituição indispensável ao funcionamento do ente estatal, mas, como todas as outras instituições nesse nível, têm papel definido e delimitado pelo ordenamento jurídico, cumprindo a todas elas o dever de zelar pelo perfeito funcionamento do sistema. Vai daí que pensar em vilipendiar o ordenamento constitucional chega a ser ofensivo à nacionalidade e, no caso específico do militar em questão, uma quebra escandalosa do dever de obediência hierárquica.

Como e por que chegamos a tanto? Convenhamos que o próprio Supremo criou a armadilha em que veio de se enroscar. E criou quando, de maneira absolutamente estapafúrdia, inventou essa presepada de que a pena de prisão pode ter seu cumprimento iniciado após decisão condenatória proferida em segundo grau de jurisdição. Até hoje não consegui digerir essa tolice e, cá na minha insignificância provinciana, sempre achei que ela não podia produzir flor que se cheirasse. Vejo agora que me assistia razão e vou tentar explicar.

Acuado por uma opinião pública mal informada, porque igualmente mal formada pela grande mídia opressiva e inconsequente, o Supremo não conseguiu desfazer o imbróglio em que se meteu, tendo sido pontuada de lances hilários e deploráveis a sessão em que tratou do assunto. Na televisão, por exemplo, havia até um placar em que eram anotados os votos, assim como se de gols se tratasse num jogo de futebol. Fiquei esperando que, a qualquer momento, fosse ouvir a voz do narrador Galvão Bueno descrevendo a “jogada” de um ministro que, em “lance sensacional”, tivesse feito um gol de placa, colocando seu time em vantagem no marcador. Falta-me informação sobre se seria possível marcar pênalti nessa teatralização do direito, mas, se o fosse, era bem provável que a torcida da equipe beneficiada se levantasse para aplaudir o árbitro, enquanto a contrária iniciaria a xingação de praxe.

O voto da ministra Rosa Weber foi um show à parte. Pelo que pude entender (e peço que levem em conta minha decantada ignorância), Sua Excelência era a favor da concessão da ordem de habeas corpus. Negou-a, entretanto, alegando um tal de “princípio da colegialidade” que, segundo ela, a obrigava a seguir a maioria, esquecida de que estava participando de um julgamento colegiado e de que o seu voto seria computado precisamente para decidir de que lado estava a maioria. Algo mais ou menos deste jeito: eu quero “assim”, mas, como a maioria quer “assado”, eu fico com o “assado” para que o “assado” não se transforme em “assim”. Claro como água da fonte.

O ministro Luís Fux, por sua vez, ajeitou a toga sobre os ombros e, com voz estentórea, proclamou esta descoberta impressionante: “Em nenhum lugar da Constituição está escrito que uma pessoa não pode ser presa depois do julgamento condenatório em segunda instância”. Admirável. E eu dei um salto na cama, quase acordando a Heleninha, enquanto clamava: Ó, professores de direito. O que me ensinastes vós sobre “sistema” na estruturação do próprio direito como ciência? Por acaso já passou a ser possível existir um conflito efetivo e real entre as normas de um mesmo sistema? Se não, então como é que Sua Excelência não soube fazer a conjugação sistemática das normas constitucionais?

Se o tivesse feito, poderia ter concluído o que é primário para qualquer estudante mais aplicado: a pena criminal só pode ser executada quando há certeza da culpabilidade e a Constituição diz, aí sim com todas as letras, que “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Como dá para perceber, estando ausentes as paixões de baixa estirpe, a questão não diz respeito a Lula ou Zé dos Anzóis. Ela está acima, muito acima disso e se resume a uma coisa muito singela: ou respeitamos mesmo a Constituição ou outras vozes agourentas, como a do general, terminarão por fazer coro. Não gosto nem de pensar.

 

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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1 comentário

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  1. João Lago disse:

    Com a máxima devida vênia professor e mestre Felix Valois

    Em minhas frequências as aulas de Instituição de Direito Público e Privado, no curso de administração no Instituto de Ciências Humanas e Letras – ICHL, na antiga Universidade do Amazonas – UA, tive a oportunidade de estudar direito constitucional, quando aprendi que o Supremo Tribunal Federal – STF tinha como função dirimir assuntos relacionados à Constituição Federal – CF e, essencialmente, ao examinar determinada matéria teria como dever resgatar a intenção do poder constituinte original quando elaborou determinado preceito de direitos e deveres. Essa interpretação da função do STF para mim é primordial, pois na separação dos poderes que rege a nossa democracia, a função de redigir as leis é do Congresso Nacional, cabendo ao poder judiciário implementá-las quando as demandas cheguem aos tribunais. O juiz não investiga e nem colhe provas para um processo, pois o trabalho de investigar é uma função do poder executivo (policia civil e policia federal). Isto significa que não é função do judiciário elaborar as leis e investigar, mas poderá criar jurisprudência e promover a justiça a partir da interpretação da letra do código ao qual se debruça.

    Pode-se interpretar que é a jurisprudência que revela a inteligência da lei, quando inúmeros juízes ao examinar fatos distintos chegam a um mesmo discernimento a partir da interpretação da mesma norma jurídica. O direito anglo-saxônico (common law) utiliza-se a das decisões dos tribunais como fator primordial para a procedência de causa em um novo fato, pois se um cidadão em outro tribunal teve a deferência de seu pedido aceito, como todos são iguais perante a lei, nada mais justo que alguém que esteja em mesma situação tenha seu pedido aceito em sua defesa ou em sua acusação. Porém, a história da democracia indica que desde o século XVII é de John Locke, na clássica separação dos poderes, a aversão (respaldado por Montesquieu) da possibilidade dos juízes doutrinarem, mas já naquela época admitia-se que as generalizações fossem feitas de coisa julgada, ou seja, sendo essa a limitação dos juízes. Todavia, no caso de dúvidas, a interpretação da lei caberia não aos
    juízes, mas ao parlamento para dirimir a questão, sendo este o conceito do civil law que indica mais o apego ao que está escrito na lei do que propriamente das decisões dos tribunais, equilibrando o poder do judiciário com o do legislativo.

    Falar de commom law e civil law é tão atual, para entender a atuação do STF, justamente porque o direito brasileiro tem inspiração no civil law e por isso é tão distinto, por exemplo, do direito praticado nos EUA. Os tribunais no Brasil julgam o fato em comparação com a letra da lei e, havendo dúvida quanto à coisa julgada, pode-se recorrer à instância imediatamente superior na busca de uma nova interpretação para absolvição ou condenação. Em último caso, havendo suspeita que princípios fundamentais do cidadão garantidos na CF estejam sendo violados, pode-se recorrer ao STF. Daí porque os advogados de Lula recorreram com um habeas corpus ao STF para livrá-lo da prisão, pois pediam que se revisasse o artigo 5º da CF, inciso LVII, que diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O problema é que os manuais de direito consideram o “trânsito julgado” quando não há mais possibilidade das partes recorrerem e é justamente nesta redação que cinco ministros, vencidos pela maioria, dão seu entendimento que seja inconstitucional a prisão após a condenação em segunda instância, essa mesma que levou Lula a cadeia. Esses cinco ministros voltam as suas costas togadas para a impunidade que a redação isolada da lei provoca na sociedade, pois está mais do que certo que as cadeias estão abarrotadas de pobres miseráveis que não tem acesso a bons advogados.IIE que são considerados “bons advogados” não para provarem a inocência de
    seus clientes, mas por meio de inúmeros recursos possíveis, nas diversas instâncias da justiça, postergarem a prisão de seus clientes até a prescrição do crime cometido. Lógico que a OAB é contra a prisão em segunda instância da mesma forma que taxistas odeiam o Uber, pois em ambos os casos, uma e outro, vem para atrapalhar os negócios. Quanto mais tempo ficam com um cliente, quantos mais recursos possíveis, mais ganham dinheiro. Logo, quem não tem como pagar, vai para a cadeia tão precocemente.

    Esta reflexão pede tão somente aos ilustres ministros do STF que não olhem apenas para o artigo 5º da CF, mas voltem também os seus olhos para o artigo 3º, inciso I que diz: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Também deveriam ler o inciso IV desse mesmo artigo que diz: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Tanto o artigo 3º quanto o 5º tratam das chamadas “cláusulas pétreas” da CF que não podem ser mudadas a não ser por uma nova constituição. Ambos têm mesma importância e analisá-los isoladamente não é interpretar a CF, mas buscar forma casuística no debate que venham a privilegiar um grupo de aquinhoados.

    Não se pode construir uma sociedade justa quando os ricos e poderosos conseguem livrar-se de seus crimes e os pobres são os que verdadeiramente vão direto para a cadeia. Não se pode promover o bem de todos quando a sociedade privilegia o rico com a impunidade e a justiça seja um valor subjetivo para os demais. Portanto, se é para julgarem o texto escrito resgatando a intenção do poder constituinte quando ditaram a CF, não foi essa a sociedade que os brasileiros de bem desejaram e desejam para si. Justiça sem igualdade e voltando as costas para o bem de todos, não é justiça.

    João Lago