Intervenção

Tenho uma pergunta muito simples: as forças armadas vão resolver os problemas da violência e da criminalidade no Rio de Janeiro? Aos que se inclinarem pela resposta afirmativa informo que estão abertas as inscrições para o prêmio “Cândido, ou o Otimismo”, patrocinado pelos admiradores de Voltaire. É um tributo à ingenuidade tola que, correndo parelhas com a alienação, conduz a um estado de bem-aventurança política, em que o indivíduo é levado a acreditar no improvável e até no impossível, passando a tê-los como verdades incontestáveis.

A história republicana do país é pontilhada de ditaduras, algumas mais cruéis e insanas que outras. Da última nos livramos há escassos trinta e três anos, sendo certo que o maior legado dessa reviravolta foi a atual Constituição, que está completando apenas três décadas. O cerne dessa conquista sempre foi a busca pelo banimento de todas as formas de arbítrio, permitindo-se que, mesmo a partir de uma base capitalista e burguesa, possamos viver com o mínimo de segurança jurídica, sem os sobressaltos da violência institucional. O decreto de intervenção federal em terras fluminenses abre precedente da mais alta periculosidade nesse cenário que deveria ser de tranquilidade.

Questiono-o, primeiro, sob o aspecto da necessidade. Parece-me inacreditável que a gama de poderes (e não sou poucos) de que dispõe o ente estatal não lhe possibilitasse mecânicos de enfrentar, dentro da normalidade, o problema de que se cuida. Ao optar pela exceção, o presidente da República, ainda que implicitamente, atesta uma incompetência devastadora da estrutura do sistema, assim como se dissesse à Nação que, sem o toque de chegada da cavalaria, os peles vermelhas triunfariam inapelavelmente.

Não é verdade isso. Já agora é possível perceber a real motivação desse açodamento do governo federal. A derrota do Planalto, no Congresso, era inevitável no que diz respeito à aprovação da Emenda Constitucional da reforma da previdência. Sabendo, como constitucionalista que é, da impossibilidade de alterar a Constituição durante o período em que durar a intervenção, o doutor Temer interveio e, com isso, se livrou do vexame de ver sua proposta ir para o lixo no parlamento. Mas isso se traduz num absurdo monumental porque a mesquinhez e a pequenez do motivo não podem, nem de longe, ombrear com as dimensões galácticas dos efeitos.

Meu segundo questionamento repousa na utilidade da medida. Se cara feia e arbitrariedade resolvessem a questão da criminalidade violenta, o Brasil seria um éden. Explico-me: a última ditadura, por duas décadas, foi pródiga naqueles dois fatores e, nem por isso, avançamos um milímetro que fosse nesse campo. Até parece que o raciocínio intervencionista parte do princípio de que, colocando tanques nas ruas a patrulhando-as com soldados federais, o crime organizado se dissolverá por livre e espontânea vontade, tomado de pavor pela demonstração de exuberância armada. Então, o coelhinho da páscoa existe. Quando muito haverá um deslocamento das bases de operação. Alerta vermelho para os estados próximos ao Rio de Janeiro.

Veja-se que coisa interessante, como exemplo do que pode ocorrer: fala-se que, durante a intervenção, poderão ser expedidos “mandados coletivos de busca e apreensão”. E eu tenho que clamar: ó venerandos e respeitados mestres da velha Jaqueira! Onde estáveis que não me ensinastes o em que consiste esse instrumento. Diz-se que, com ele, as forças militares estarão autorizadas a revirar e a rebuscar não uma residência, mas todas as de um bairro ou mesmo de uma cidade. Que coisa! Se algum juiz ou tribunal assinar uma idiotice dessas, confesso que minha crença no direito sofrerá sensível diminuição.

Na faculdade nos ensinam, desde os primeiros momentos e com base nas lições dos antigos juristas romanos, que “non omne quod licet honestum est” (nem tudo o que é lícito é honesto), ensejando uma diferença entre direito, moral e justiça. Permito-me fazer uma analogia e dizer que, igualmente, nem tudo o que é lícito é necessário ou adequado. A intervenção federal está rigorosamente revestida de todos requisitos constitucionais e legais. Mas, por sua periculosidade latente, que ameaça a normalidade democrática, deveria ter sido evitada e, mais importante, não deve ser aplaudida nem incentivada.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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1 comentário

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  1. Marcelo disse:

    A intervenção, tenha o nome que tiver, parta de onde partir, é a prova inconteste da má gerência, desídia e a prática delituosa de desviar recursos públicos dos setores mais importantes dos quais dependem os mais pobres. Intervenção nunca.