Crime e violência

A corrupção é uma forma de violência, proclama a CNBB, fazendo a advertência: não se combate a violência usando de mais violência. No plano físico, equivale a um ralho na “bancada da bala” e em todos os tarados que insistem em acreditar que “bandido bom é bandido morto”. Li, outro dia, um artigo científico desse grande médico amazonense que é o doutor Euler Ribeiro. O texto fez luz sobre a minha ignorância, informando que a incontinência urinária não é uma doença; é um sintoma. Ouso fazer uma simetria para concluir que a violência endêmica que se espalha pelo Brasil é apenas sintomática de uma terrível patologia que corrói o nosso tecido social: a ausência de uma política de Estado para a educação. Com um sistema de ensino combalido, onde as estatísticas de duvidosas aprovações têm prevalência sobre a qualidade, fica difícil esperar que a nossa juventude possa atingir os degraus primeiros da escada que lhe permitiria desvendar os meandros da teoria do conhecimento.

Uma criança que cresce nas ruas, fazendo malabarismo nos semáforos, sem assistência familiar e sem escola, está no caminho certo para atingir com rapidez um desses dois destinos, ambos de péssimo gosto: o cemitério ou a penitenciária. E essa triste realidade vem se repetindo por gerações a fio, sem que o aparelho estatal dela se dê conta ou, o que é mais grave, vendo-a, mas mantendo uma indiferença sideral, assim como se o problema não lhe estivesse afeto. É vergonhoso. Quem tem o mínimo de respeito pela cidadania não pode (e não deve) assistir passivamente a esse espetáculo deplorável de corrosão das entranhas nacionais, em que a cultura deixa de ser antropocêntrica para se tornar mero jogo de palavras entre elites de formação deturpada.

Dei aula de direito penal por mais de trinta anos. Lado a lado com o indispensável embasamento teórico próprio da matéria, sempre busquei fazer com que meus alunos compreendessem o óbvio: o crime não é um fenômeno exclusivamente (nem mesmo principalmente) jurídico. Suas raízes sociais são indiscutíveis, de tal maneira que fica difícil entender essa aversão doentia ao ser tido como “criminoso” (o bandido). Muitos o encaram como uma entidade extraterrestre, aqui chegada por um algum fenômeno esotérico, sem nenhuma explicação científica. Vale dizer: num meio essencialmente bom, o “criminoso” é o corpo estranho que o contamina e leva à destruição. Tolice imensurável que, como todas as da espécie, tende a se espraiar e a ser aceita com uma facilidade comovente.

Vai daí que, estando o crime umbilicalmente ligado à violência na acepção do vulgo, esta última também passa, nesse imaginário, a fazer parte daquele tumor cuja extração se apresenta como indispensável, numa operação cirúrgica que não leva em conta as peculiaridades do organismo em que a “doença” se instalou. E tem início a cansativa e interminável ladainha: é preciso acabar com a violência a qualquer custo, mesmo que isso venha a custar a própria vida do “paciente”.

É preciso encarar o que existe de aparentemente controverso no ponto de vista que exponho. Isso se traduz na inevitável pergunta: como você explica, então, os crimes e os criminosos do colarinho branco que, como é primário, não podem ser debitados às injustiças e às desigualdades sociais? Holmes não deixaria passar a oportunidade de lembrar: elementar, meu caro Watson. Como vêm de deixar claro os bispos do Brasil, a corrupção nada mais é que uma das formas de violência, de tal sorte que, sem perder a coerência, é perfeitamente plausível também tê-la à conta de um sistema deturpado na sua origem, que se esmera em exibir profundo desprezo pelo ser humano em si mesmo. Não existe corrupto sem corruptor, como não se envergonharia de dizer o Conselheiro Acácio, e ambos também não são frutos de alguma civilização alienígena. Nasceram aqui, neste “vale de lágrimas”, e aqui devem ser combatidos com as armas da educação e do civismo.

Afora isso, resta a barbárie. Se ela é o desiderato dos pregoeiros da brutalidade, deixemos que se engalfinhem eles no coliseu da insanidade. Mas vamos preservar a saúde da Pátria, vacinando a Nação contra a ignorância. Não vejo por que isso possa parecer tão remoto e inacessível, quando se trata de simples opção.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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1 comentário

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  1. Marcelo disse:

    A CNBB, as CEBs e a teologia da libertação jogam importante papel na sociedade porque fizeram a “opção preferencial pelos pobres”, os excluídos, os marginalizados, aqueles(as) que estão à margem do sistema de produção capitalista. Diferentemente, daqueles que defendem “bandido bom é bandido morto”, “Não faria falta nenhuma se tivessem morrido uns duzentos”, que se preocupam apenas com os efeitos, mas não com as causas do fenômeno, porque imediatistas, apelativos, irreflexivos. Acham perda de tempo o estudo, a análise, a pesquisa dos fatores que geram a violência, lamentavelmente. Excelente texto.