Respeito e solidariedade

O que pode haver de pior em termos de sentimento aflorou no episódio das recentes prisões ocorridas em Manaus. Não sei ao certo se me causava pesar ou revolta ver como certas pessoas nem tentavam camuflar o sádico prazer que lhes proporcionava o deplorável espetáculo. Judiciário e polícia bem que poderiam ter sido mais cautelosos na divulgação dos fatos.  É indiscutível, porém, que a preeminência das figuras envolvidas era ingrediente explosivo e tornou inevitável que a coisa adquirisse proporções midiáticas, transformando o que não deveria passar de um incidente processual em show televisivo. Tem sido sempre assim ao longo dos últimos anos, numa recidiva que não faz bem à cidadania, nem contribui para engrandecer as instituições.

Essa recorrência, contudo, pode ter o condão de explicar as dimensões do fato como notícia, mas não chega, nem de longe, a ser sustentáculo para a mesquinharia do ódio que faz brotar, nem para a insensibilidade que faz gerar aos borbotões. Surge o deboche puro e simples, o riso acanalhado e os “bem que eu disse” dos profetas de beira de igarapé e das cassandras de ocasião.

Jamais consegui colocar na minha linha de raciocínio os motivos que podem levar alguém a se comprazer com a desgraça alheia. Não sei de religião ou corrente filosófica que tenha entre seus postulados orientação de tal ordem. É ela, ao que parece, vertente da intolerância que, esta sim, tende à onipresença entre os fundamentalistas, os quais, por definição, se consideram donos da verdade absoluta. O que, ao fim e ao cabo, não deixa de ser a ignorância na sua forma mais lapidada.

Se todos os seres humanos somos iguais na essência (e isso me parece indiscutível), as diferenças culturais, de educação e de caráter não deveriam ter o poder de se elevar à categoria de criadoras de distinções radicais entre os indivíduos. Não que esteja eu a pretender a homogeneidade. Antes de ingênuo, seria um tolo. Quero significar apenas que, tendo em vista a essência, cuido não seria demasiado almejar que entre todos os da espécie permanecesse vivo e ativo o mínimo de respeito.

Nos países que adotam a pena de morte (e ainda os há, por mais deplorável que isso possa parecer), dizem que é costume convidar os parentes da vítima e autoridades especialmente escolhidas para assistirem à execução do condenado. Como as execuções já foram públicas e festivas, parece que subimos algum degrau civilizatório. Ledo engano. Apenas disfarçamos a hediondez do comportamento, tentando dar-lhe caráter solene e respeitoso, quando, no fundo, a brutalidade permanece a mesma. Porque, se aos familiares acorre o sentimento como justificativa, para o estado-executor a coisa não logra esconder a cruel marca da vingança punitiva.

Já me disseram que, apesar de comunista, sou um sonhador. Ouso inverter os dados da propositura: sou um sonhador porque sou comunista. E como não o ser se a fraternidade e a solidariedade sempre foram objetos dos meus devaneios? Distantes como a utopia de Galeano, nunca deixaram de me atrair com força irresistível, apesar do círculo vicioso que se estabelece entre a aproximação e a distância.

Sei que os mais cáusticos e implacáveis hão de estar dando boas gargalhadas. “É incorrigível esse tal de Valois. Como se dizer comunista se o comunismo acabou?” E eu lhes respondo com a lógica do poeta: “Ora, direis, ouvir estrelas? Certo, perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, que, para ouvi-las, muita vez desperto e abro a janela, pálido de espanto”.

Da minha janela descartei a visão do Partido. Este acabou de fato e irremediavelmente. Mas, “pálido de espanto”, continuo a contemplar o universo da esperança, sem compreender a razão dos ódios, dos rancores, das guerras, das desigualdades, da miséria, da fome e das humilhações. Sigo esperando (se em vão, paciência) que uma estrela desse astral me venha dar a explicação definitiva. Nasci assim, sou assim e assim espero morrer. Só não poderia tolerar a suprema ignomínia de que alguém pudesse ter o mínimo de razão se me imputasse a falta de respeito com os meus semelhantes. Isso, nunca.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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2 comentários

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  1. Marcelo disse:

    Professor, o respeito e a solidariedade devem vir de todos os cidadãos: daqueles que aplaudem a prisão das “touridades” que vão de um lado para o outro em viaturas pretas da polícia nos principais jornais de TV; e também dos que se lançam candidatos ao governo, gastam milhões em campanhas eleitorais e quando eleitos prometem cumprir a Constituição e gerir os recursos públicos principalmente para os que mais necessitam do sistema público de saúde, dos programas de habitação, de abertura de postos de trabalho, da educação pública entre outros. Mas, sabemos, isto tem raízes históricas, pois quando os “conquistadores” aqui chegaram, trouxeram consigo o modelo da civilização cristã e ávidos por riquezas que resultaram em pilhagem, exploração e morte. Não, definitivamente não é a semana mais feliz da minha vida, muito pelo contrário, é uma semana de sombra e tristeza.

  2. joao marques disse:

    Respeito a sua opinião, sabemos que o seu escritório está defendendo um dos acusados, tem interesses próprios para defender o indefensável.
    Quantas pessoas sofreram por causa desses senhores? Portanto, se fosse em um país que não defende-se tanto os bandidos , pegariam no minimo prisão perpetua. Daqui um pouco o Sr. irá dizer que a culpa deles roubarem foi dos doentes pq ficaram doentes….Eles negaram aos semelhantes o direito de não sofrerem nas filas dos hospitais, com dores , sem leitos , sem remédios. Piedade para quem é vítima e não para os causadores. Basta de inversão de valores!