Uma surpresa

Eis senão quando, vejo-me “autor”. Conto como ocorreu o fenômeno: agindo à sorrelfa, numa trama digna de “thriller” cinematográfico, meus quatro filhos reuniram alguns destes escritos que eu cometo semanalmente, convenceram uma editora e publicaram o conjunto em forma de um livro a que deram o nome de “Crônicas – para além do texto”. Lá estava eu pronto para almoçar na casa da Lucíola, sorvendo um delicioso Porto, quando eles anunciam que tinham uma surpresa. A própria consistiu em eles tirarem um exemplar de uma caixa, apresentarem-me o meu novo, temporão e inesperado rebento, enquanto o Caco, usando sua prerrogativa de primogênito, lia o prefácio elaborado a oito mãos. Estando a família toda presente e ainda alguns poucos e queridos amigos, era inevitável que a coisa descambasse para a emoção. Houve, confesso, até lágrimas, o que não chega a ser um espanto, dado o inusitado da cena em que o tal “autor” foi o último a saber.

E lá me pus eu a oferecer exemplares aos convivas, atividade que, sendo inteiramente nova e desconhecida para mim, exigiu algum tempo, ainda mais porque, em razão da qualidade hieroglífica e infame da minha caligrafia, precisei redobrar esforços para tentar evitar o lugar-comum e botar no papel alguma coisa legível. Não foi fácil, mas, (por que não dizer?) foi prazeroso, mesmo para um velho como eu, em quem as vaidades, se existiram, são hoje “pensamentos idos e vividos”. Só não pude terminar a “cerimônia” como eles me pediam: fazendo um discurso. Aí também já era demais e voltei a lembrar a todos que, como sempre repeti para os meus alunos, só existem duas coisas mais chatas do que discurso (e seus consectários, como aula), que são cerimônia religiosa e enterro.

Surpreenderam-me, de fato, os quatro, com a publicação. A respeito deles, recentemente, por ocasião do Dia dos Pais, escrevi o seguinte: “Falo por mim e pela minha experiência nesse meio século de paternidade. Luís Carlos, Lucíola, Alfredo e Lúcia me deram o que jamais imaginei fosse possível: a capacidade de amar sem exigências de retorno, amando pelo prazer de amar em si mesmo. Com eles, não consegui construir o mundo com que sempre sonhei. Mas valeu a pena lutar por isso, até porque com eles travei o bom combate, tendo ao lado sua lealdade e o seu afeto. Quem tem filhos como os meus pode até não seguir o meu exemplo. Paciência. Faço-o sozinho: meus filhos, seu velho pai não lhes soube dar riqueza; ela sempre esteve acima da minha capacidade. Mas, fiquem certos: é impossível medir a gratidão que lhes devoto pela sua existência, assim como é imensurável a minha vergonha por tudo aquilo em que lhes falhei”. Ora, em sendo assim, posso compreender a bondade verdadeira com que empreenderam o esforço de preparar a surpresa. Veio ela daquele amor filial que não se alimenta de convenções, nem está à disposição no mercado, atacadista ou de varejo, por isso que, muito ao contrário, brota e se alimenta da convivência fraternal e respeitosa.

Não sei qual será o futuro do livro. Nem me interessa, aliás. Não vejam nisso qualquer laivo de desprezo. É só que para mim, que nunca aspirei a tanto, basta-me receber a oferenda tal como ela foi posta: como manifestação de amor e carinho. Não posso, por óbvio, pretender que esse sentimento se sobreponha ao próprio desvalor do que escrevo, pois nunca o fiz em busca de reconhecimento, nem, muito menos (seria absurdo) de glorificação literária. Jamais incidiria eu no terrível erro do sapateiro que quis passar além das sandálias.

De qualquer sorte, os quatro, ainda mancomunados, estão programando (foi o que me disseram) um “lançamento oficial”. Pediram-me que escolhesse um local e sugeri a OAB. As razões hão de ser óbvias: por mais de dois terços de minha vida, não tenho sido outra coisa que não advogado. Há de ser lá, portanto, com a devida permissão do presidente Choy, que entregarei ao público o trabalho. Não sei se alguém vai se interessar por isso. Não duvido, pois a experiência indica que há gente no mundo para tudo, até para gostar de dupla sertaneja. Lembro, porém, que a “obra” já recebeu uma crítica implacável. Heleninha, entre um folguedo e outro e com a imponência dos seus quatro anos, pegou um exemplar e me perguntou com toda a seriedade do mundo: “Vovô, por que esse teu livro não tem figuras?” Fica a advertência para os incautos e pretensos adquirentes. Para alguns pode ser defeito irremediável.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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