Ignorância filosófica

Felix Valois

No tempo em que frequentei o curso clássico, no velho Colégio Estadual do Amazonas, havia uma cadeira de filosofia. Menos por culpa da professora Lindalva Mota, que era a titular da disciplina, e mais por conta da leviandade típica da juventude, pouco aproveitei dos ensinamentos que então foram ministrados. De qualquer sorte, porém, só o fato de poder saber da importância da matéria já foi suficiente para me incutir a certeza de que é impossível aprofundar estudos em qualquer ramo do conhecimento humano sem noções, ainda que rudimentares, de filosofia.

Depois, já na faculdade de direito, e talvez levado pela minha inata consciência nacionalista, envolvi-me com o movimento estudantil de esquerda, que fervilhava à época, quase que prenunciando a próxima chegada do golpe militar. Consequência: aos dezoito anos, estava eu filiado ao Partido Comunista Brasileiro e, ali, era impossível não conhecer mais de perto as lições do marxismo-leninismo, até porque o saudoso Geraldo Campelo, mentor de toda aquela juventude, era implacável na exigência de leitura para a mocidade. Foi quando me encantei com Afanasiev e seu “Princípios Fundamentais de Filosofia”, encarando o que ele considera a “questão fundamental da filosofia”, com a necessidade de estabelecer qual é o dado primário: a matéria ou a consciência, o que, numa simplificação extrema, implica na divisão dos filósofos em materialistas e idealistas.

Mais tarde, então sob a inclemente intolerância da ditadura, o Ministério da Educação houve por bem banir a filosofia da grade curricular do ensino médio no Brasil. Dá para imaginar as razões subjacentes nessa inacreditável decisão. Pensar contra o regime era crime gravíssimo e, como para ser a favor do regime, não era preciso pensar, muito pelo contrário, a filosofia se tornou material descartável e inútil. Fico matutando: se eu, que bem ou mal tive algum contato com o assunto, sou forçado a reconhecer minha profunda deficiência, o que dizer dos jovens que nunca nem ouviram falar da questão? Aliás, esse é apenas um dado da decadência brutal que se abateu sobre o ensino como um todo. O nível é deplorável, a ponto de ser necessário ministrar aulas de língua portuguesa para os que conseguem ingressar numa escola de nível superior. Parece mentira, mas é verdade. E verdade palpável, como pude comprovar ao longo de mais de trinta anos de magistério, tentando lecionar direito penal. Vi alunos que não conseguiam juntar duas orações para formar um período e outros, para os quais Camões era apenas um português caolho. Pelo menos lhe sabiam a nacionalidade. O que não é pouco diante daquele que só conhecia o Sócrates como jogador da seleção nacional.

Pois muito que bem. Esta semana terminei de ler um livro intitulado “Tudo o que você precisa saber sobre filosofia”, de autoria de Paul Kleinman. É um manual de duzentos e trinta páginas que, como toda obra do tipo, passa a voo de pássaro sobre tudo, começando com os filósofos pré-socráticos e se estendendo às manifestações contemporâneas do pensamento. Convenhamos que é muita areia para um caminhão desse porte. E é mesmo. Mas produziu em mim um impacto monumental: naturalmente superficial, o livro teve, apesar disso, o condão de me mostrar, com clareza solar, a dimensão da minha ignorância. Eu nunca tinha ouvido falar sobre as questões do “navio de Teseu”, da “vaca no campo”, do “problema do prisioneiro” ou do “dilema do mentiroso”. Isso sem esquecer “o paradoxo sorites”, “a terra gêmea” e “o paradoxo do homem careca”. Fascinante. Simplesmente fascinante.

Deixem-me relatar como o livrinho expõe o último dos paradoxos mencionados. A escolha é proposital: “Se um homem tem um fio de cabelo na cabeça, então ele é considerado careca. Se um homem com um fio de cabelo na cabeça é considerado careca, então um homem com dois fios na cabeça é considerado careca. Se um homem com dois fios de cabelo na cabeça é considerado careca, então um homem com três fios na cabeça é considerado careca. Dessa forma, um homem com um milhão de fios de cabelo na cabeça será considerado careca. Mesmo que um homem com um milhão de fios de cabelo na cabeça não seja careca, de acordo com a lógica, ele teria de ser considerado assim. Então, em que ponto um homem não é mais considerado careca”? Repito: fascinante.

Em razão de tudo isso, deliberei escrever este texto, em que proclamo minha ignorância filosófica, à guisa de modesta homenagem à professora Maria Matilde Corrêa Hosannah da Silva. Ela é doutora em filosofia e, sem embargo disso, tem-se dado à pachorra de tecer inteligentes comentários sobre as mal traçadas linhas que semanalmente produzo. Colocando a questão em termos dialéticos, diria que somos a tese e a antítese: ela, católica fervorosa, e eu, ateu convicto. Como fazer a síntese desse conflito. A professora Matilde saberá dizer muito melhor do que eu. Da minha parte arriscaria apensas um palpite, imaginando que a síntese estaria no bom senso. Estando errado, fica por conta da minha ignorância.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

Veja também
Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *