Festival de novo tipo

A metade final dos anos 80 viu o Festival Folclórico de Parintins tomar dimensões nacionais, depois que uma empresa resolveu explorar o filão e obrigou os caboclos a trocarem a água de cacimba pela “acqua nera del imperialismo”.

A Velha Tupinambarana passou a ser manchete, até para divulgar dondocas e seus scorts, emergentes e quatrocentões, que passaram a afluir à Ilha, no mês de junho, na ânsia de conhecer a aldeia onde índios eram capazes de produzir um espetáculo que, por incrível que pareça, não era antropofágico.

Passaram a colher, pelo menos, a possibilidade de dar um toque exótico às suas profundas conversas nas “happy hours”:

— Você já foi, querida, naquela ilha, uma tal de Pirintim?

— Onde fica isso, meu bem?

— Ah, não me diz que você não sabe! É lá no Estado da “Amazônia”. Tem um tal de festival. São uns índios pacíficos que, durante três noites, saem das tribos para se reunirem num tal de bumbódromo, apresentando umas danças bem primitivas. É chique, queridinha. Eu fui com o Albertinho e nos divertimos pra valer. Imagina que nós ficamos no camarote do presidente da Lata Loca e naquele fim de mundo tinha uísque Chivas Regal e até água Perier. Só tem que ter cuidado com as piranhas que as de lá são muito agressivas, não reconhecem nem as colegas.

O certo é que, com toda a divulgação da mídia, Caprichoso e Garantido despertaram o bairrismo adormecido num município de um certo Estado vizinho.

Reuniram-se os principais da cidade para discutir estratégias que permitissem promover uma festa capaz de ombrear com “a daqueles comedores de jaraqui”.

— Por que não fazemos o festival do jacaré? Propôs o Dr. Marzinho, o esclarecido rábula da comunidade, que sempre encantou seus conterrâneos com discursos quilométricos, nos quais o primeiro passo era invariavelmente a prova da erudição do orador: alea jacta est.

— Permita-me ponderar, ilustre causídicoera a respeitada voz do vereador Cursino –, que, mesmo sendo esse valente anfíbio um símbolo tradicional de nosso glorioso Estado, poderíamos ser mal interpretados homenageando, numa época de paz, um animal tão feroz.

A assembléia foi suspensa por meia hora para que cada um desse asas à imaginação e, na volta, trouxesse uma proposta apta a obter o consenso.

— Estão reabertos os trabalhos, anunciou o dr. Credêncio, presidente da Associação Comercial, em cujo augusto salão nobre tinha lugar o meeting transcendental.

O primeiro orador foi o cabeleireiro Tinguinha, respeitado no município desde que voltou de São Paulo com um diploma de pós-graduação e passou a fazer maravilhas nas cabeças de damas e cavalheiros. Voz mansa, trejeitos profundamente gentis, o artesão das madeixas foi curto e convincente:

— Temos em abundância, aqui nas nossas plagas, um animal que, se não possui o porte altivo dos bovinos inimigos, leva-lhes a palma em matéria de delicadeza e generosidade. Pequeno, não mais que cinco centímetros, e rosado, tem garantida a primeira qualidade. Quanto à segunda, é de todos sabido que caprichosamente ele pode suprir necessidades agudas em matéria não espiritual. Falo-vos, meus aguerridos conterrâneos, do candiru, esse simpático peixe teleósteo, siluriforme, tricomicterídeo e estegofilíneo. Pode e deve ser ele o símbolo com o qual alçaremos nossa terra aos píncaros da glória, fazendo a nação esquecer os brutos da vizinhança.

A candura, a sinceridade, a veemência e o amor à terra demonstrados pelo orador foram suficientes. O auditório prorrompeu em aplausos e vivas e só restou ao secretário a lavratura da ata histórica, consignando que, a partir daquela data, ficava instituído o Festival do Candiru.

Como há de haver concorrência num festival, as famílias se dividiram: as da situação criaram o candiru “Entra Gostoso”, que adotou a cor rosa shocking, enquanto o grupo oposicionista botou na rua o candiru “Daqui Não Saio”, todo envolvido em grená. Foi e tem sido um sucesso. É certo que durou alguns dias a pendenga sobre o nome do local em que deveriam ser feitas as apresentações dos dois grupos folclóricos. Mas hoje, no final batizado “Candirúdromo Baitolá”, Daqui Não Saio e Entra Gostoso fazem a delícia daquela boa gente, desfilando suas alegorias e danças, sempre no mês de outubro, quando a vazante proporciona maior abundância do simpático peixinho.

Curioso é ver que as rimas das toadas têm uma tendência incrível para terminar em unda ou, nos casos mais explícitos ou debochados, simplesmente em u.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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