Auditores-fiscais do Amazonas emitem nota de repúdio a texto preconceituoso que venceu concurso na Receita Federal

teca

O Terminal de Cargas (Teca), onde o autor do texto preconceituoso trabalhador, é um dos mais importantes arrecadadores de impostos do País

Os auditores-fiscais do Amazonas emitiram nota de repúdio ao texto “Você merece uma cidade melhor”, vencedor de concurso nacional de prosa da Receita Federal, considerando-o “preconceituoso para com a cidade de Manaus”. Este portal emitiu editorial fazendo crítica semelhante. “Vários analistas-tributários…, amazonenses, lotados na cidade de Manaus, demonstraram insatisfação com o texto vencedor”, afirma nota, publicada no site do Sindicato Nacional dos Analistas-Tributários da Receita Federal do Brasil no Amazonas (Sindireceita-AM).

A nota de repúdio está sendo enviada à Coordenação-Geral de Atendimento e Educação Fiscal (Coaef), parte da Receita Federal encarregado do concurso, além da administração do órgão, acompanhado de abaixo-assinado. Pede a revisão do resultado do concurso. O auditor-fiscal Marcos Libório Fernando Costa, lotado na Demac/SP, é duramente criticado.

“Diversos são os trechos nos quais o autor da prosa externa uma verve preconceituosa, destilando registros de desagrado e desapreço em relação à cidade de Manaus e aos manauaras”, afirma a nota dos auditores amazonenses.

O repúdio lembra que a Portaria RFB 1.025, de 23/06/2016, no parágrafo 8º, determina que “Todo o material que apresente conotação imoral ou ilegal ou, ainda, que faça referências pejorativas a pessoas ou instituições, bem como que prejudique a imagem institucional estará sujeito à desclassificação do concurso”.

Eis a íntegra da nota de repúdio publicada no site do Sindireceita do Amazonas:

 

NOTA DE REPÚDIO – PRÊMIO “HISTÓRIAS DE TRABALHO DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL”

No ano de 2010 foi criado o Concurso Histórias de Trabalho no âmbito da Receita Federal do Brasil por iniciativa da Coordenação-Geral de Atendimento e Educação Fiscal. O objetivo estabelecido foi de coletar, selecionar e premiar registros e experiências que tratam do cotidiano do trabalho da Secretaria da Receita Federal do Brasil, apresentados por seus servidores, ativos e inativos.

As histórias vencedoras e ainda as classificadas pela comissão julgadora são publicadas, de acordo com o ano do concurso, em livro chamado “Histórias de Trabalho da Receita Federal do Brasil”. Desta forma, o concurso busca inserir a Receita Federal do Brasil em uma tendência atual de resgatar a Memória Institucional, valorizar e conservar o histórico de trabalho dos servidores da casa.

No presente ano, na categoria prosa, a comissão julgadora do concurso premiou o trabalho “Você merece uma cidade melhor”, do Auditor-Fiscal Marcos Libório Fernando Costa, lotado na Demac/SP. A premiação foi determinada pela Portaria RFB nº 1.638, de 22 de novembro de 2016 e divulgado no sítio oficial da Receita Federal do Brasil no endereço http://idg.receita.fazenda.gov.br/sobre/institucional/memoria/concurso-historias-de-trabalho-da-rfb/resultado-da-7a-edicao-do-concurso-historias-de-trabalho

Para a minha surpresa, como servidor lotado na Receita Federal do Brasil em Manaus, Amazonense e Manauara, o texto da história premiada está repleto de preconceito e discriminação para com a capital amazonense e seus habitantes. Diversos são os trechos nos quais o autor da prosa externa uma verve preconceituosa, destilando registros de desagrado e desapreço em relação à cidade de Manaus e aos manauaras, como podemos constatar a seguir:

“…finalmente se descortinou a imensa clareira aberta na mata que é a capital do Amazonas, Manaus”

“Calor e umidade eram companheiros inseparáveis dos exóticos habitantes daquelas paragens, postos pela natureza – o calor e a umidade – para convencimento dos humanos de que aquele pedaço do universo não lhes era favorável.”

“…com a ajuda do ar condicionado, acabou teimando em ficar naquele lugar, mesmo contra a vontade da natureza”

“O resultado é que estando sujeito a um calor infernal de um lado, e ao onipresente ar condicionado de outro, se é submetido diuturnamente – nativos e visitantes indistintamente – a um cruel processo de pasteurização, o tempo todo indo do frio para o calor úmido e deste para aquele, como se fôssemos o produto da ordenha de vacas”

“…notei que os poucos habitantes daquela cidade se moviam lentamente…Moviam-se muito lentamente, eu diria, o que soube depois tratar-se da tal da leseira.

“…onde tudo – absolutamente tudo – tinha gosto de coentro”

“…assim como não havia prevenção para a malária e a dengue, onipresentes naquela região inóspita.O máximo que se podia fazer era tomar a vacina contra a febre amarela e se besuntar de repelente para evitar as picadas dos sinistros mosquitos”

“Soube depois de serpentes cruzando vias principais da cidade, de um cidadão alvejado por flecha após uma briga de bar”

“Eu havia chegado a Manaus, mas pelas peculiaridades do povo e do lugar, parecia ter chegado a Macondo”

Macondo é “uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”, imaginada no livro “Cem Anos de Solidão” do autor Gabriel García Márquez.

“…Manaus fazia-me sentir um legítimo e desafortunado Buendía”

“…Mas estava disposto a suportar aquilo tudo; e a ser resiliente”

“Mas a “capital do Amazonas é cidade grande”, diziam-me entusiasticamente, antes da viagem, aqueles que não iriam para lá”

“…mas em um ambiente sui generis como Macondo, digo, Manaus, seriam úteis para garantir uma qualidade razoável, sem a presença marcante do coentro. Pura ilusão”

“…percebi que Manaus era uma ilha, cercada de selva por quase todos os lados. Em Manaus quase nada se planta, nada se cria, tudo se transforma… em mais selva”

“Os nomes das pessoas e a linguagem diferente também tornavam aquele lugar deveras exótico”

“…Mas e o GPS? Não funcionava! Por uma estranha interferência sideral o mapa aparecia ligeiramente deslocado da posição geográfica plotada, inviabilizando o funcionamento do aparelho. Proximidade com a linha do Equador? Interferência magnética? Leseira dos responsáveis locais em compensar o desvio geográfico para viabilizar o recurso?”

“Também, com relação às expressões e palavras diferentes, chamavam qualquer pessoa, conhecidos e desconhecidos, de mano. E um doce de mandioca sem nenhum resquício de amendoim era um pé-de-moleque. Acintoso!”

“…Tudo isso tornava Manaus cada vez mais incompreensível, mais fantástica, mais Macondo do que nunca para mim, um estrangeiro em seu próprio país”

“…Assim como no interessante filme francês “A Riviera não é aqui”, que circulou entre os colegas tão estrangeiros em Manaus quanto eu, e que retratava um funcionário público francês que queria ir para a Riviera, mas foi obrigado a conviver com os moradores do norte do país, em NordPas-de-Calais, procurávamos pensar que aquela experiência não duraria muito, que logo poderíamos voltar para nossas casas, invariavelmente ao sul daquele lugar, “Back down south”, como cantavam os Kings of Leon”

Na trama do filme “A Riviera não é aqui” na tentativa de agradar sua esposa deprimida, o diretor de agência de correios Philippe busca uma transferência para a Riviera Francesa, um lugar considerado excelente para se viver. Sua tentativa não dá certo resultando na aplicação de uma penalidade que é sua transferência para a uma localidade desconhecida, fria e chuvosa no norte da França, chamada de Bergues.

“…Depois de pouco tempo assumi a chefia do setor, muito mais pela minha idade avançada e pelo desespero do antigo chefe em achar um substituto que o permitisse ir embora”

“Logo no primeiro dia a secretária do setor – Dona Salustiana – nos recebeu com cara de poucos amigos, mas demonstrando uma eficiência acima da média. Com o tempo fui conhecendo melhor a Tiana e, como acontece nas melhores amizades, fomos gradualmente nos ajudando e compreendendo melhor um ao outro. De inimigos mortais – eu, pelo simples fato de ser paulista, ela, pelo simples fato de ser manauara – nos tornamos grandes amigos. Ela até me confidenciou, entre tantas inconfidências sobre meus predecessores, o porquê da prevenção dos manauaras contra os sulistas, principalmente esses paulistas metidos: “porque só pensam em trabalhar, não se divertem”

“…O trabalho na importação absorvia toda minha atenção e energia, tornando um pouco mais breves meus dias naquele lugar tão exótico”

“No aeroporto Eduardo Gomes, à espera de meu último voo só de ida, de um lado um sentimento de alívio por voltar à civilização, aos modos fidalgos, às padarias e feiras livres que são o berço de nossa cultura ocidental”

Cabe ressaltar que a 7ª edição do prêmio “Histórias de Trabalho da Receita Federal” foi instituída pela Portaria RFB nº 1.025 de 23 de junho de 2016 que em seus parágrafos 5º e 8º do artigo 3º determinam, respectivamente, que:

Os trabalhos devem enfocar situações relacionadas as atividades desempenhadas na RFB, recuperando dados históricos que sejam relevantes para a conservação da Memória Institucional;

Todo o material que apresente conotação imoral ou ilegal ou, ainda, que faça referências pejorativas a pessoas ou instituições, bem como que prejudique a imagem institucional estará sujeito à desclassificação do concurso.

Na prosa vencedora “Você merece uma cidade melhor não foram abordadas somente situações relacionadas as atividades desempenhadas na Receita Federal do Brasil. Grande parte do texto discorre sobre lamentos e lamúrias de uma pessoa que assumiu o cargo de Auditor-Fiscal em uma localidade desconhecida, descrevendo situações que se passam no seu cotidiano, fora do seu local de trabalho. Não foi possível identificar que relatos recuperam dados históricos e relevantes para a conservação da Memória Institucional da Receita Federal do Brasil.

Uma leitura, sem envolver questões de interpretações mais aprofundadas, é suficiente para perceber que a cidade de Manaus é descrita pelo autor como uma localidade inóspita, incivilizada, selvagem, improdutiva, atrasada, decadente, sem recursos, com habitantes preguiçosos e preconceituosos, sendo ainda uma lotação “castigo” para quem trabalha na Receita Federal do Brasil. Tanto que ao final de sua prosa premiada ele se diz aliviado por voltar à CIVILIZAÇÃO.

A Coordenação-Geral de Atendimento e Educação Fiscal – Coaef por desenvolver e coordenar ações voltadas à recuperação e ao registro da memória da instituição deveria observar, através da Comissão Julgadora do Concurso “Histórias de Trabalho da Receita Federal do Brasil”, que ao premiar uma prosa tão preconceituosa está fomentando uma visão deturpada da cidade de Manaus, difamando-a para todos os servidores da Receita Federal do Brasil e para a sociedade. Essa conduta deveria ser revista e eu, como servidor da Receita Federal do Brasil lotado em Manaus, Amazonense e Manauara, espero que uma atitude digna e coerente seja tomada pela COAEF, com o objetivo de reconhecer que existem problemas com o texto premiado.

O preconceito vem se apresentando como um grande mal na sociedade, gerando intolerância entre as pessoas. A Receita Federal do Brasil já passa por um momento interno delicado e não precisa de mais um agravante para desestruturar ainda mais o seu clima organizacional.

Veja também
1 comentário

Deixe um comentário para Uma cidadã amazonense Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Uma cidadã amazonense disse:

    Talvez este senhor que fez esta dissertação sobre Manaus não estivesse a par da nossa verdadeira índole. Cabe ao prefeito Arthur Neto, como representante eleito dela, fazer nossa defesa intransigente não bastando uma nota de repúdio. Mas será que ele tem verve para isso? Será que ele vai no quinto dos infernos defender de fato a cidade de Manaus? Não basta bater no Lula, que a defenderia, como defende os direitos humanos, tem que ter boa índole.