A tradição do consumo de carne de caça e tartarugas e a legislação ambiental federal

O episódio envolvendo o levantador de toadas e intérprete de escola de samba Prince, que publicou fotografias com imagens de animais silvestres e tartarugas no Instagram, sendo abordado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), traz muitas reflexões. A publicação deste portal virou um panavueiro.

A discussão que se seguiu revela que ainda há muitos achando ser a Internet terra de ninguém, espaço livre para ofensa pessoal. Há também um grande número imaginando ser possível se esconder em perfis falsos. A Justiça tem alcançado muita gente que publica bobagens em redes sociais. O mundo da Internet, por outro lado, tem cada vez menos segredos para a polícia.

Muito do lixo que surge numa discussão dessas, que ajuda quando feita em nível civilizado, se deve mesmo a mentes simplórias e ignorantes. Mas muita coisa é pertinente.

A questão mais relevante levantada no debate é a da cultura cabocla. Onde fica a tradição amazonense de comer carne de caça, tracajá, iaçá, pitiú, tartaruga, quelônios em geral? Faça-se uma pesquisa entre a população interiorana e sobrarão poucos que ainda não comeram paca, cotia, tatu, capivara, pirarucu (só pode comer de cativeiro ou de área manejada), anta, peixe-boi e bicho de casco.

Costumo dizer para os amigos que, na minha infância e adolescência, era ou eu ou eles. E continua sendo assim, nos rincões mais distantes do interior amazônico.

O mundo, porém, andou. Os ecologistas demonstram fartamente que o meio ambiente não consegue sustentar o crescimento da população. Se éramos alguns gatos pingados nos beiradões amazonenses, hoje somos mais de 2 milhões na capital e mais de 2 milhões no interior. Se toda essa gente deitar a consumir tartaruga e caça, livremente, não sobrará nada para filhos e netos.

O caminho é o cultivo em cativeiro.

Os tabuleiros do Alto Trombetas demonstram que é possível cultivar tartarugas. Preservadas, cuidadas, afastadas dos predadores – dos quais o homem é o maior –, elas crescem em escala geométrica. Lá é possível ver, como vi com meu pai, praias e mais praias cobertas pelos cascos desses quelônios.

Há vários criadores de tartarugas, inclusive certificados pelo Ibama, no Amazonas. Nenhum, no entanto, está incluído em qualquer programa sistemático de criatórios governamental. Até porque tal apoio não existe.

Fazendas de pacas, na Bahia, tornaram-se grande sucesso. A carne do animal é saborosa e ele se reproduz com facilidade em cativeiro.

A sociedade é capitalista. O mercado está aí. Criar animais silvestres para efeito de abate é uma tradição e uma necessidade secular da humanidade.

No Alto Solimões, em Benjamin Constant ou Tabatinga, há cerca de dez anos, um caboclo se viu atacado por uma enorme cobra. Foi puxado para a água, mas levava na cintura um facão e a matou. Um fiscal do Ibama o prendeu. Isso virou tema de debate no Senado Federal, levado pelo então senador Arthur Virgílio. Sustentou o parlamentar que o direito à vida é maior que qualquer outro, ou seja, se alguém mata para sobreviver, em legítima defesa, não pode ser condenado.

A legislação deixa brechas para punir até mesmo a tradição. O princípio geral do direito à vida, à sobrevivência e à legítima defesa vai socorrer o caboclo sempre.

No caso do Prince, que alega não ter sido sequer notificado pelo Ibama, houve muito ruído na comunicação. O próprio superintendente do órgão no Amazonas, Mário Lúcio da Silva Reis, deu declarações falando sobre a multa que o órgão aplicaria ao cantor, de R$ 35 mil. Prince, por outro lado, afirma que não foi sequer notificado e se apresentaria espontaneamente ao Ibama, para dar esclarecimentos. Disse que estava apenas “zoando”, ao fazer tais publicações.

A tradição do caboclo é uma coisa. O que Prince fez foi brincadeira de mau-gosto, como ele próprio já percebeu, transformando o simples gesto de se alimentar em momentos de crueldade com os animais.

Claro que a discussão sobre a caça e a pesca desdobra-se em muitos outros aspectos. Daria um tratado. Nesse episódio, em especial, espera-se a síntese. Que ela seja boa para a economia e a tradição amazonenses.

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1 comentário

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  1. Alexandre Augusto lauria noronha disse:

    Parabéns meu confrade, poucos aqui na minha terra falam de tradição, eu continuo afirmando…….Tradição é primordial na vida do caboclo.