‘Por que andar sem cinto de segurança no carro é um risco e eu posso andar em pé no ônibus?’

A frase, num dos cartazes das manifestações que invadiram o Brasil nos últimos meses, é intrigante: “Por que andar sem cinto de segurança no carro é um risco e eu posso andar em pé no ônibus?”. A maioria dos carros, hoje, tem um alarme que faz o maior escândalo até que você coloque o cinto. Os ônibus, por outro lado, cada vez mais são equipados com aquelas barras para o sujeito se pendurar e que fazem com que os coletivos lembrem o cenário de uma carreta ou barco boieiro.

O cartaz reflete um importante paradoxo, tão incrustrado na sociedade que fica difícil distingui-lo, mesmo com a mais potente lupa cidadã.

O carro é, mesmo com toda a agressividade da indústria e dos bancos, com seus financiamentos em 60 ou mais meses, sem entrada e sem juros, um dos mais nítidos paradigmas de distinção social. À medida que se torna mais fácil comprá-lo, mais se torna profundo o abismo que segrega quem não possui um veículo próprio. Estão mantidas, claro, as divisões entre os populares, com motor 1.0, e os de passeio que, embora básicos, ficam na casa entre R$ 50 mil e R$ 100 mil, além das marcas que se tornaram sinônimo de alto luxo, como as Ferraris.

Quem não tem carro então, numa cidade como Manaus, onde o transporte coletivo é um acinte, vai parar além do limbo.

Ora, direis, mas o carro anda a velocidades muito maiores que as dos ônibus e quando se trata de rodovia, onde os coletivos vão mais rápido, há poltronas individuais e o uso do cinto também é obrigatório. É, mas, no carro, a legislação não distingue alta e baixa velocidade e você é multado se não estiver com o cinto, até mesmo parado num semáforo.

Os movimentos que explodiram em manifestações nas ruas das grandes cidades brasileiras foram uma espécie de concentração de interesses contrariados. Todos sabemos que algo vai mal na nossa sociedade, sem saber exatamente o que é. Quando os movimentos se refinam e passam a ter metas específicas, como o combate às drogas e à violência, o número de manifestantes se reduz drasticamente, como tem sido visto no momento atual do movimento.

Essa questão ônibus x carro é comum, no mundo inteiro. Une países desenvolvidos e subdesenvolvidos, não importa se integrante do G7, G20 ou G3000. Todos usam os ônibus com maior número de lugares em pé e menos cadeiras. Todos multam quem não usa o cinto no carro.

O Brasil, apesar de tudo, emerge com mais consciência cidadã das manifestações que tomaram conta das ruas. O Congresso Nacional rema, às cegas, em busca de um Norte menos cínico na política e dos políticos. Gente que não tinha qualquer problema em vir à vitrine para afrontar a cidadania brasileira, como Renan Calheiros, hoje se retrai e o desafio de suas assessorias é tentar mantê-los despercebidos. A estratégia de divulgar pesquisas mostrando crescimento da popularidade do presidente de plantão, logo em seguida às crises, não deu mais certo e a presidente Dilma teve um rombo nos índices.

É hora de colocar o transporte coletivo como prioridade nas reflexões sociais. Até porque foi a tarifa de São Paulo que fez explodir essa contestação toda. A frase em epígrafe é, portanto, um alerta de que temos mais coisas que ferem a cidadania, embaixo e em cima do tapete, que exigem um olhar mais agudo de todos nós.

Londres, quando  construiu o primeiro metrô do mundo, em 1863, tinha população igual à de Manaus. Por pouco, em face da Copa do Mundo, a capital amazonense não investiu valor/quilômetro igual ao do metrô para construir um monotrilho, com capacidade bem menor de transportar passageiros. Está na hora de iniciar uma obra ousada e que equipe a cidade com um transporte capaz de retirar carros das ruas, melhorando o trânsito, e, ao mesmo tempo, transferindo cidadania a quem hoje mofa esperando nas paradas de ônibus. Está na hora de pensar em um metrô para Manaus.

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3 comentários

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  1. Denys Cruz disse:

    Ótimo post. Bem a nossa realidade.

  2. José Maria Seixas disse:

    Eu sempre questionei isso e nunca tive uma resposta.

  3. Wagner Lima disse:

    Essa questão sempre reaparece quando acontecem essas tragédias, como a do dia 28.03. O CTB desobriga o cinto em ônibus com passageiros em pé, e as razões para isso se justificariam pelo seguinte:
    – ônibus devem transitar em velocidade reduzida, e são controlados por dispositivos;
    – a massa do ônibus é maior que a maioria dos outros veículos, tornando, em tese, aliada à velocidade reduzida em que o ônibus transita, mais seguro que carros menores;
    – (resposta não oficial) é muito complicado para a fiscalização dos órgãos oficiais a verificação dos passageiros com cintos, especialmente porque o poder público não promove transporte de massa de qualidade.

    No caso do acidente entre a caçamba e o ônibus, de pouco adiantaria os passageiros do ônibus estarem de cinto, dada a violência daquela irresponsabilidade. Contra estupidez não há lei que dê jeito.

    Sem dúvida se houvesse um metrô, isso provavelmente não aconteceria.