Toada que ‘gruda’, revela o modo tradicional de cantar o cotidiano de forma simples e criativa. De quebra, boa desculpa para um amanhecer boêmio

O sujeito chega em casa de manhã, depois de uma noite de farra, e encontra a mulher de pé, na porta, esperando por ele. Dizer o quê? Se for o compositor parintinense Chico da Silva dá toada. E já deu samba que se tornou tema de disco.

Chico gravou, em 1984, o vinil “Samba na hora H”. A música tema, “H de malandro” (faixa 1), é uma deslavada justificativa para a esposa insone, que espera o marido amanhecido: “Sei que você vai querer brigar/ mas eu errei e vou confessar/ foi num papo de bar mais uma saideira/ que eu fiquei a noite inteira/ e não vi a hora passar…”

“Samba na hora H” tem uma curiosidade. A faixa 7, “Beijo matinal”, é a primeira música de um então totalmente desconhecido compositor, morador de Xerém, distrito de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro. Depois de ficar bem famoso, “o cara” que comoveu o País socorrendo as vítimas das chuvas na localidade, recentemente, foi às lágrimas no programa do Faustão, na TV Globo, quando soube da falsa notícia da morte de Chico da Silva. Trata-se, claro, de Zeca Pagodinho.

Em 1999, Chico voltou à tona. Desta vez, mergulhado em suas origens parintinenses, ele compôs “Garantido no cio”. A toada, infelizmente, não passou em nenhuma seleção para CD oficial e estava despercebida. Só este ano, quando o bumbá tem como tema “Garantido, o boi do centenário”, com a polêmica surgida em torno das músicas selecionadas (veja matéria clicando aqui), a composição voltou à tona.

Chico guardava uma “demo”, uma versão feita sem os detalhes de finalização de estúdio, mas gravada na marcante voz de David Assayag, em 2008, quando ele era o levantador oficial do Garantido.

Uma das coisas mais difíceis para qualquer compositor popular é encontrar a linguagem direta, sem firulas, que transmita sua mensagem com clareza, beleza e atratividade. Esse é um retrato dos anais da toada parintinense.

Chico da Silva, diante da cena clássica da mulher, mãos nas cadeiras, cheia de razão, fechando com o corpo a passagem, saca um “Amada senhora”, para não deixar dúvidas de seu amor nem do respeito que tem por ela.

Insone, apela para o óbvio “perdoa minha demora”, seguido da justificativa mais que plausível, diante do fanatismo da amada, “tô chegando agora/ do curral do boi”.

Aí, com o início resolvido, o malandro esperto se solta e dá sua versão fantasiada de como foi a noite, estimulando o lado torcedor da esposa. “Ê festa animada” resolve todos os males da humanidade, ainda mais se vier engatada num “E que batucada/ super ritmada”. Até permite uma “agulhada” nela com o “por que você não foi?”, que, de quebra, serve para mostrar que não havia nada para esconder.

A essa altura, a melodia cresce, o intérprete tem a chance de explorar todo seu potencial de voz, o ouvinte se liga.

O que a companheira perdeu? Não viu “seu Garantido/ Serenando no luar/ da Fazenda”. “Serenando”, aliás, é palavra obrigatória no linguajar parintinense, quando alguém quer dizer que a festa foi ao ar livre e em clima da mais absoluta felicidade.

Nesse ponto, a toada chega a um gargalo. A mulher, claro, está desconfiada que tenha rolado alguma traição, mas o compositor explica que quem estava no cio era o Garantido: “E no cio/ cobrindo uma rês bem novinha”. E ele? “Mas eu/ não foi cunhantã grande não/ que me prendeu”. Prova? “Mas quando já!”, que, em tradução livre significa “nunca”, “de jeito nenhum”, “jamais”. Na festa só havia “cunhantãzinhas” (crianças).

Chico da Silva, que não bebe há alguns anos, e qualquer parintinense com o mínimo de apego às tradições, pagaria de bom grado algumas caixas de bebida para esse grupo que ele cita como álibi da noitada. João Batista Monteverde é filho de Lindolfo Monteverde e ex-amo do Garantido. Antônio, filho mais velho do fundador. Os irmãos Belini e Dedé Marchão são a fina flor do folclore parintinense e sobre eles há dezenas de “estórias” ou “histórias”, ninguém nunca sabe. Só uma: os dois jogavam futebol, mas a partida durava pouco porque quando acertavam um chute de jeito, embora jogassem descalços, furavam a bola.

Sutilmente, lá pelo meio, na repetição do verso final, está um “haja toada meu amor…”. Chico da Silva, criado na avenida Rio Branco, berço do Boi Caprichoso, cresceu brincando no bumbá azul e branco, mas, de madrugada, como este se recolhia mais cedo, atravessava a cidade para ir brincar no finalzinho do ensaio do Garantido.

Menino, memória prodigiosa, ele andava pelos bares acompanhando compositores como Ambrósio (“Alô, morena/ vim trazer boi da fazenda/ estou chegando, no silêncio do tambor/ e não repare meu amor/ o meu pandeiro orvalho da madrugada molhou”) e Pitombeira (“Povo contrário me conhece bem/ e ele sabe há muito tempo que sou um perigo/ saia da frente que quero passar/ os meus vaqueiros estão prevenidos/ minha bandeira nunca cai por terra/ é encarnado e é de guerra e eu sou Garantido/ E não é?”). Os dois entornavam todas e iam trocando desafios, desfiando letras, achando melodias, numa verdadeira fábrica de toadas.

A ressaca “lavava”, no dia seguinte, todo esse manancial criativo. Dias depois, quando a noitada se repetia, o Chico “curumim” aparecia cantando umas toadas novinhas. Ambrósio, principalmente ele, mas também todos os demais, perguntava: “De quem é essa menino?” E ele: “É sua!”.

Isso dito, só resta curtir “Garantido no cio”, mas, antes, a letra completa:

Garantido no cio

Chico da Silva

Intérprete: David Assayag

 

Amada senhora

Perdoe minha demora

Tô chegando agora

do curral do boi

 

Ê festa animada

E que batucada

Super ritmada

Por que você não foi?

Pra ver seu Garantido

Serenando no luar

da Fazenda

E no cio

Cobrindo uma rês bem novinha

Mas eu

Não foi cunhantã grande não

Que me prendeu

Mas quando já! Cunhantãzinha!

Com os amigos

Com João Batista

Seo Belini

E seo Dedé

E seo Antônio

Amanhecemos

Tomando uma na Baixa do São José

 

Haja toada meu amor

Com os amigos

Com João Batista

Seo Belini

E seo Dedé

E seo Antônio

Amanhecemos

Tomando umas na Baixa do São José

 

AGORA CLIQUE AQUI E OUÇA A TOADA

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2 comentários

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  1. Guto Marcondes disse:

    Obrigado, simplesmente obrigado!!
    Abraço

  2. Arnoldo Santos disse:

    Ei, Parente! Isso faz lembrar um fim de semana, acho que lá pelos idos de 1984,85… Eu já morava em Manaus. Mas tinha voltado para o aniversário de 15 anos da Marley Novo, filha de Mário Flávio e Antonina, neta do velho Osmar Novo. A turma de amigos, tudo pirralho da mesma idade, se reunia para as festas. E aí, de uma dessas, voltamos já de manhãzinha. E pra não recebermos aquele ralho geral, emendamos pra primeira missa na catedral. Foi o jeito de não recebermos carão de ninguém. Brabo foi aguentar a homilia do pároco. Coisas de Parintins! Saudações encarnadas aos queridos (como vc) contrários!