Clínica de animais

A História registra que Sobral Pinto, o imortal advogado brasileiro, defendeu Luís Carlos Prestes e Harry Berger perante o extinto Tribunal de Segurança Nacional, durante a ditadura do Estado Novo. Era época de caça às bruxas e os comunistas e seus assemelhados eram presos aos montes e submetidos às mais cruéis formas de tortura. Vimos esse filme de novo a partir de 64. Pois muito que bem. No caso do alemão Berger, tamanhas e tão intensas foram as violências físicas contra ele praticadas que, da tribuna, Sobral Pinto exigiu que o governo deferisse ao prisioneiro, pelo menos, o tratamento preconizado na Lei de Proteção aos Animais.

Foi uma peça histórica. O que ninguém poderia imaginar era que, mais de setenta anos passados, a retórica do jurista iria surgir, rediviva e guardadas as devidas proporções, na Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, onde, segundo a mídia, há de ser apresentado (se já não o foi) um projeto de lei determinando ao poder público que crie e faça funcionar uma clínica médica para atendimento de… animais domésticos. O quadro funcional da instituição será, como é lógico, composto por servidores públicos e, como tal, remunerados pelo erário.

Não tive, ainda, a rara felicidade de lançar uma vista d’olhos sobre a original propositura. Resta-me, por isso, apenas imaginar os efeitos de sua eventual concretização e o raio de alcance social que ela logrará cobrir.

A primeira dúvida que me toma de assalto é se os bichinhos a serem atendidos no hospital serão obrigados a ter cadastro no Sistema Único de Saúde (SUS). Se forem, já começo a lhes ter pena, sabendo das filas intermináveis que haverão de enfrentar para obter a carteirinha que lhes dará o direito incontestável a gratuita assistência médica. Pior ainda se o tal documento exigir fotografia, porque, então, surgirão dificuldades físicas quase insuperáveis mesmo para os melhores profissionais do ramo. Imagine ter que “bater uma chapa” de um pitbul enfurecido.

Se o hipotético doente for uma avezinha verde e amarela muito conhecida nestas plagas, brotarão situações constrangedoras, não só no momento da fotografia, mas quando do próprio atendimento. “Minha senhora – dirá o fotógrafo – o periquito não está na posição correta e desse jeito a imagem vai sair distorcida”. E no balcão da clínica: “Minha senhora, esse periquitinho é seu mesmo ou é da sua irmã? Porque aqui o nome da proprietária não bate com o da sua carteira de identidade”.

Tenho que deverá ser criado o Cadastro Único de Animais, conhecido e vulgarizado pela sigla CUA e válido para todo o Estado. Ao agendar o dia da consulta pelo telefone, o dono do irracional terá necessariamente que informar o número do CUA. Ouvirá, então, a pergunta: “Esse CUA é da capital ou do interior? E foi tirado quando?” O dono do bicho, já então irritado como se estivesse a tratar com uma atendente de operadora telefônica, vai esbravejar: “Meu amigo, o CUA é dele desde que ele nasceu. O senhor já viu algum bicho sem CUA? Até cobra de duas cabeças tem um. Parece até que senhor não sabe que é obrigatório ter CUA”.

Imagino que não haverá meio de marcar hora para o atendimento. Implica isso, necessariamente, em que na mesma sala de espera terão que conviver harmoniosamente cães e gatos, eventualmente perturbados pela estroinice de algum macaco de estimação. A paciência, então, terá que ser redobrada. Estará o fox terrier da madame confortavelmente instalado em seu “moisés”, quando adentra o recinto um magnífico doberman. “Lulu” é o original nome do primeiro enquanto o outro atende pela denominação de  “bush”. Que se cuidem os respectivos donos para evitar a batalha iminente. Vai depender da comprovação da existência de armas químicas em poder de “lulu” que, obviamente, não terá condições de enfrentar o poderio bélico de “bush”.

Estaremos assim diante de uma instituição verdadeiramente humanitária e filantrópica. Melhor para todos nós que não mais teremos de nos preocupar o pagamento de planos de saúde para os nossos “pets”. Lá em casa, por exemplo, vivem duas gatas, presentes de Bruninha, nossa linda neta de quinze anos. São a “florzinha” e “ane caroline”. Já estou vendo se encontro na internet alguma dica de como providenciar a inscrição de ambas. Não quero passar pelo constrangimento de ouvir a inevitável e indignada pergunta: “Vovô, essas duas belezocas ainda não têm CUA?” Terão, com certeza.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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