Escutas telefônicas

No final de 2007, foi instalada no Congresso a CPI das escutas telefônicas clandestinas. Os trabalhos revelaram abusos impensáveis, cometidos a partir da deturpação do texto legal que autoriza, em casos excepcionais, esse tipo de investigação. A começar pelo exagero praticado pelo próprio poder judiciário que, só naquele ano, havia concedido nada mais, nada menos, que quatrocentos e nove mil mandados, determinando a bisbilhotice eletrônica. Há de ter servido como incentivo para que os desmandos tivessem lugar, ensejando a pura e simples perturbação da privacidade de cidadãos pela vontade e deliberação de arapongas sempre disponíveis.

A coisa chegou ao ponto de até ministros do Supremo Tribunal Federal terem sido vítimas. Assim é que “o representante de Relações Institucionais da Oi Fixo (antiga Telemar), Arthur Madureira de Pinho, confirmou que o ministro Marco Aurélio foi grampeado quando visitou o Rio de Janeiro”. E adiantou: “O grampo ocorreu depois de novembro de 2005, quando saí da Gerência de Operações Especiais da empresa. Por isso, não sei detalhes dos desdobramentos do caso, nem os rumos que a investigação tomou”.

Marco Aurélio se disse, então, “perplexo” e “inconformado”, ponderando, com carradas de razão: “A situação é surrealista. Para haver grampo, teria de haver ordem de juiz. Em relação a ministro do Supremo, a competência para deferir esse tipo de autorização é do próprio STF. Será que um colega meu deu uma ordem como essa? A resposta é negativa. Então, foi um grampo clandestino como tantos outros. Se ousam a ponto de grampear o telefone de um ministro do Supremo, o que pode ocorrer com o cidadão comum?”

Mas não foi só isso. A reportagem a respeito prossegue no mesmo diapasão: “A suspeita de grampo ilegal de ministros do STF foi divulgada pela revista Veja em agosto de 2007. Na ocasião, cinco ministros (Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Sepúlveda Pertence, aposentado, Celso de Mello e Cezar Peluso) admitiram publicamente a suspeita. E mais: a suspeita do autor do grampo ilegal recaiu sobre a Polícia Federal. Um dos ministros mais incisivos foi Gilmar Mendes. Ele contou que teve certeza de que estava sendo vítima de escutas clandestinas desde o mês de junho de 2007, quando decidiu soltar detidos na Operação Navalha”.

Chega a ser um truísmo que a ninguém é dado cometer crimes sob o pretexto da necessidade de combater a criminalidade, esteja esta situada em qualquer dos patamares possíveis. Fazê-lo é, de todo em todo, prestar um desserviço ao estado democrático e de direito, que tanto nos custou conquistar após os anos de chumbo da ditadura militar. Esse estado repousa sobre princípios invioláveis, entre os quais avulta a inafastável necessidade de preservar a vida privada dos cidadãos, que só pode e só deve ser devassada em circunstâncias excepcionalíssimas e, assim mesmo, com o devido cuidado legal, ao qual não está imune nem o judiciário.

Banalizar a prática é conduta ofensiva aos que reconstruíram a democracia e aos que, com sacrifício, lutam para preservá-la. Bem por isso, o então presidente da CPI, deputado Marcelo Itagiba, do PMDB do Rio de Janeiro, entendeu que “com esses números, fica a impressão de que primeiro a polícia manda grampear o telefone, para depois começar as investigações”, enquanto seu colega Nelson Pellegrino, do PT baiano, “considera que um país com tantas ligações interceptadas não consegue garantir o direito à privacidade”.

O pior é que, de lá a esta data, ninguém ouviu falar de melhora no assunto de que se cuida.

Felix Valois

Felix Valois

* Félix Valois é advogado, professor universitário e integrou a comissão de juristas instituída p...

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